‘Roma’ é um canto de amor à infância e maternidade, diz psicanalista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Digam o que nos disserem, nós, mulheres, estamos sempre sozinhas”, disse Sofía para Cleo, sua empregada doméstica e protagonista de “Roma”, longa dirigido por Alfonso Cuarón. Sofía tinha sido abandonada pelo marido. O longa, que se passa no México dos anos 70, aborda a desigualdade social, as manifestações políticas, o machismo estrutural e os contrastes entre modernização e ancestralidade dos povos indígenas. A história de Cleo (Yalitza Aparicio), inspirada na babá Libo do diretor, é contada a partir do cenário intimista da casa de uma família abastada para quem trabalha, no bairro La Roma, também referência autobiográfica de Cuarón. Ela realiza seus deveres na casa de maneira silenciosa e enfrenta conflitos ao longo do filme de maneira contida. Na visão da psicanalista Luciana Saddi, que fez a mediação do Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (20), é por meio do retrato da intimidade presente nos momentos familiares cotidianos que o diretor transforma aquilo que parece banal em verdadeira epopeia da vida diária. “Trata-se de luta, esforço em se manter vivo diante das adversidades e sofrimentos”, afirma Saddi. Segundo ela, a saga das mulheres é fortemente retratada. “Elas lutam contra as agressões, o abandono e o cotidiano excruciante, lutam quando cuidam da casa, das crianças e de si mesmas e se unem apesar das diferenças de classe.” Para a psicanalista Talya Candi, ao resgatar suas memórias, o diretor constitui um canto de amor à infância e às mulheres que sustentam o mundo da criança e possibilitam o que o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) chamou de continuidade do ser. “O que ‘Roma’ descreve detalhadamente é a casa materna, o lugar do feminino, do acolhimento da vida psíquica, da imaginação e do afeto.” Tanto para Candi quanto para Francesca Angiolillo, repórter especial da Folha, a casa funciona como um elemento de proteção às agressões externas. A vida doméstica e todos os cheiros e sons que a envolvem com harmonia são contrastados pelo caos que vem da rua. “O filme nos descreve essa espessura do mundo interno, que funciona como uma camada psíquica de proteção contra o desmoronamento”, diz Candi. Segundo Angiolillo, o espaço carrega uma característica uterina que, ao tratar de mulheres, passa pela condição da maternidade sem a presença paterna. “Não acho que seja desprezível que a primeira coisa que a gente veja no filme seja água, tanto pelo cuidado com a casa como pelo nosso primeiro elemento, onde a gente fica resguardado no útero.” A jornalista ressalta que a água reflete um avião, elemento externo que aparece no filme em outros momentos, como um lembrete de que há um contexto maior no mundo lá fora. “A rua é um lugar de perigo, mas pode também ser entendido como um espaço de liberação.” Vai ser pelo contato com o mundo externo, inclusive, que Cleo começará a expressar seus desejos. Para Candi, a personagem é mostrada por duas facetas: a da dedicação às tarefas domésticas e a da excitação pela descoberta do mundo e das sensações da cidade. É a partir da gravidez e, consequentemente, da perda do filho, que Cleo vai fortalecendo sua condição enquanto sujeito. Após se arriscar para salvar as crianças que se afogavam no mar, mesmo não sabendo nadar, ela conquista uma voz que, até então, não tinha sido retratada no filme. “É a primeira vez que ela chora e diz que não queria ter o filho que ela perdeu. Ela para de estar presa e submetida aos desejos dos outros para ter uma fala e um sentimento dela.” A repórter compara essa conquista de voz do final do filme com o comportamento mais expressivo e escandaloso da patroa Sofía que permeou toda a narrativa, apesar de sua condição de submissão de mulher de classe média. “Quem viveu no México sabe que essa característica retraída e quieta é bastante marcante da população indígena. Isso deixa de ser um dado cultural para ser social, de opressão. Os instrumentos da Cleo não são os mesmos da patroa”. Mesmo com essas ressalvas em relação ao abismo social entre Cleo e Sofía, as debatedoras concordam que passa a existir uma solidariedade entre as duas a partir da ligação da condição materna e de abandono que compartilham. “Quando ela se desafoga e revela que não queria ser mãe, é acolhida e abraçada pela família. Existe possibilidade de se igualar com a patroa na função materna, não porque engravidou, mas porque salvou as crianças”, afirma Angiolillo. O debate do Ciclo de Cinema e Psicanálise, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em parceria com o Museu da Imagem e do Som e com a Folha, pode ser conferido na íntegra no canal do MIS no Youtube. O próximo evento irá debater o filme “Aos Olhos de Ernesto”, no dia 3 de novembro, às 20h.

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