SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A China só comunicou à Organização Mundial da Saúde que o coronavírus poderia ser transmitido pelo ar, de uma pessoa para outra, cinco dias depois de assinar um acordo comercial com os Estados Unidos, porque não queria nenhuma notícia negativa circulando antes do pacto. Além disso, demorou a divulgar o número real de infectados nas primeiras semanas da pandemia, atitude acobertada pela órgão mundial. Tais acusações poderiam ter partido dos americanos contra o principal rival geopolítico do país, mas estão na boca -e na obra- de um dos mais relevantes artistas da atualidade, Ai Weiwei. No auge da pandemia em Wuhan, antes de o coronavírus se alastrar pelo mundo, o dissidente chinês recrutou moradores da cidade para registrar a vida sob o severo “lockdown” ali e os efeitos devastadores da Covid-19 no corpo humano. O resultado é o documentário “Coronation”, um dos destaques da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta. O festival traz também outro filme de Ai -“Vivos”, sobre o drama dos 43 estudantes de uma escola que formava líderes comunitários em Ayotzinapa, região rural do México, e que desapareceram numa noite de setembro de 2014. Ai, de 63 anos, dirigiu “Coronation” em ritmo acelerado a partir de Roma, onde trabalhava numa adaptação da ópera “Turandot”, ele conta. O artista contratou ex-colegas do estúdio que mantinha em Pequim e que foi destruído pelo governo chinês, estudantes de arte e outros profissionais de sua confiança e pediu que registrassem o seu cotidiano em Wuhan “com honestidade, para não desperdiçarem essa situação severa e impensável”. Os cinegrafistas enviavam os arquivos todos os dias ao artista, que via o material e então dava retornos por mensagens de texto e voz, explicando o que deveria ou não ser filmado e como fazer isso. Na tela, o espectador vê panoramas aéreos da imensidão urbana da cidade com seus prédios iluminados, no estilo de um anúncio para investidores estrangeiros ou turistas, alternados com cenas de luz branca muito forte –longos registros em tempo real de dentro das UTIs de hospitais criados para tratar pacientes de Covid-19. O sofrimento agudo dos doentes intubados e o interminável processo de desparamentação dos médicos ao saírem de suas alas são imagens que o governo chinês provavelmente não gostaria de ver espalhadas. “A China ainda se crê uma sociedade totalitária. Num documentário, o aspecto mais difícil é mostrar os chamados fatos. O poder do Estado se manifesta com frequência no controle da informação. A censura e as notícias falsas são métodos poderosos de controle para quase toda administração –autoritária e, infelizmente, as chamadas democracias”, diz. Cerca de 50% das cenas foram registradas abertamente, e a outra metade gravada de forma secreta, conta o artista. Ele não detalha, no entanto, quais medidas foram tomadas para garantir a segurança da equipe num país que monitora seus cidadãos o tempo todo. Diz só que, uma vez que as imagens eram enviadas, os cinegrafistas estavam seguros, já que a responsabilidade sobre a mensagem do filme recairia sobre ele. A exibição do documentário também teve seus percalços devido à influência chinesa sobre a indústria do entretenimento, segundo o diretor. Ele conta que não imaginava que o filme seria rejeitado pelos festivais de cinema de Veneza, Toronto e Nova York, e também pela Netflix e pela Amazon, os gigantes do streaming. “Como todos sabemos, esses festivais têm grandes mercados internacionais, e o maior comprador no mercado de filmes é a China.” Além de dobrar os festivais de cinema ocidentais, a China estaria influenciando ideologicamente os filmes sendo produzidos em Hollywood com seu “soft power”, uma preocupação do Partido Comunista nas últimas duas décadas, acrescenta o artista. “Eles [os dirigentes do partido] apresentam mensagens profundamente mentirosas e com ideologia, estilo e gosto corrosivos.” Com população de 1,4 bilhão de pessoas e uma classe média em expansão, a China constrói em média 25 salas de cinema por dia, de acordo com dados do ano passado da Motion Picture Association of America, órgão que representa estúdios cinematográficos de Hollywood. A consultoria Pricewaterhouse Coopers prevê que o país possa em breve ter lucro maior com as bilheterias de cinema do que os Estados Unidos, atualmente o principal mercado. O outro documentário de Ai em exibição na mostra é “Vivos”. Em quase duas horas que demoram a passar, o artista volta o seu olhar para os familiares dos 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, a maioria adolescentes, que desapareceram depois que o ônibus em que viajavam foi atacado pela polícia da cidade de Iguala. Até hoje, só duas ossadas foram identificadas, e é muito baixa a probabilidade de os demais serem encontrados com vida. O filme levou cerca de um ano para ser feito, conta o artista, e foi o resultado de diversas viagens suas ao México. Teve a colaboração do Centro Prodh, uma ONG de defesa dos direitos humanos que o apresentou a produtores e jovens cineastas locais, para que pudessem filmar em lugares remotos e num momento perigoso. Embora explore a extrema violência no México, onde dezenas de milhares de pessoas desapareceram por causa do tráfico de drogas nos últimos anos, o documentário “não é investigativo, mas examina o que é uma sociedade injusta –na qual quem comete crimes não sofre consequências– e o que acontece com as famílias das vítimas”. O foco está mais no drama pessoal do que na crítica ao governo mexicano. A lentidão da narrativa de “Vivos” é compensada pelos belíssimos enquadramentos das moradias dos personagens e de seu cotidiano. Há uma preocupação estética em extrair beleza de casas humildes e de ofícios como o descascar do milho e o preparo das tradicionais tortillas. Esse tempo meio morto, em que quase nada acontece, é retratado com o apuro de uma pintura, em tomadas que lembram os longas do diretor mexicano Carlos Reygadas. Diante da ausência de uma explicação coerente por parte do Estado aos familiares e do desmantelamento do time de investigadores internacionais responsável pelo caso, sobrou a fé. “Você pode ver claramente que a religião desempenha um papel importante. Ela ajuda quando não há outra ajuda. Os mexicanos são algumas das pessoas mais legais que já conheci. O apelo à Justiça se tornou quase um ato religioso, porque a sociedade ainda não consegue dar uma resposta clara.” Este é Ai Weiwei – Seu documentário anterior, “Human Flow”, de 2017, tratava da crise dos refugiados; o diretor e a equipe visitaram 40 campos de deslocados em 23 países – No ano passado, o artista seguiu explorando o tema com o filme “The Rest”, sobre os refugiados de guerras no Afeganistão, Iraque e Síria que chegavam a países da Europa em busca de asilo – O artista é um dos mais ferozes críticos da China. Numa performance provocadora na década de 1990, quebrou uma urna de 2.000 anos da dinastia Han, que durou 400 anos e é considerada um dos grandes períodos da história chinesa – Em outro trabalho, “Straight”, de 2009, usou vergalhões de aço de escolas demolidas pelo terremoto na cidade de Sichuan para prestar uma homenagem às 5.000 crianças mortas pelo desastre, que tiveram seus nomes omitidos pelo Partido Comunista – Em 2018, seu ateliê em Pequim foi destruído sem aviso prévio pelo governo chinês; as autoridades já haviam demolido seu estúdio em Xangai, em 2011 – Em 2011, passou 81 dias na prisão depois de ser preso no aeroporto de Pequim; teve o passaporte apreendido por quatro anos e, quando o recuperou, se instalou em Berlim, a partir de 2015. Hoje, ele vive no Reino Unido