RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRES) – Ao atear fogo em duas igrejas católicas, um punhado de manifestantes chilenos inflamou uma ilusão que anda em alta nos círculos da extrema-direita: está em marcha uma perseguição massiva contra cristãos. Na segunda (19), dia seguinte ao ato de vandalismo, Jair Bolsonaro postou uma mensagem no Twitter para lembrar de seu discurso na Assembleia Geral da ONU em que evocou uma suposta cristofobia global e completou: “Hoje, igrejas foram incendiadas na capital do Chile por grupos de esquerda”. Para ilustrar, a imagem de uma jovem num dos templos em chamas, ela com as mãos fechadas em chifre, tal qual a saudação de satanistas ou metaleiros. A cristofobia é real em várias partes do mundo, particularmente nas de maioria muçulmana. Em 2019, no Sri Lanka, mais de 300 pessoas morreram na data mais importante do cristianismo, a Páscoa, numa série de explosões que atingiu igrejas e hotéis. Há 13 anos, na 99% muçulmana Turquia, três funcionários de uma companhia que publica Bíblias tiveram mãos e pés amarrados antes de serem degolados. Não precisa de um desfecho letal para detectar preconceito, inclusive institucional, contra cristãos. Em 2018, na Argélia, uma corte multou dois homens por carregarem mais de 50 Bíblias em seu carro. Mas falar de um acossamento generalizado a seguidores de Jesus Cristo em países de maioria cristã faz tanto sentido quanto dizer que há racismo reverso porque um branco foi apelidado de palmito no trabalho. A intolerância à fé alheia é, de fato, um problema grave no Brasil. Mas é praticada sobretudo contra seguidores de crenças afrobrasileiras, alguns dos quais na mira de traficantes evangelizados que vandalizam terreiros e ameaçam pais e mães de santo com armas, como o autointitulado Bonde de Jesus. Não é opinião, é estatística. Números do Disque 100, serviço criado por ONGs nos anos 1990 para receber casos de violações contra os direitos humanos, desde 2003 sob a guarda do governo federal, mostram que em 2018 houve 506 denúncias de discriminação religiosa. Três em cada dez ocorrências atingiram religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, e só 4,5%, evangélicos. Especialistas ainda ponderam que o governo Bolsonaro, no qual o presidente e também sua ministra Damares Alves exaltam valores “terrivelmente cristãos”, serve de espantalho para que os segmentos mais vulneráveis recorram a um canal oficial para reportar novas denúncias. O que aconteceu no domingo (18) em Santiago partiu de poucos dos milhares de chilenos que protestaram a uma semana do referendo que decidirá se o país escanteia a Constituição adotada na ditadura de Augusto Pinochet. E foi uma exceção, já que são bissextos, no Ocidente, episódios similares. Falar numa opressão estrutural contra a cristandade é ir longe demais. Não que igrejas sejam poupadas de massacres, mas eles não necessariamente têm o desprezo pela fé cristã como gatilho. Exemplo: o supremacista que matou nove fiéis num templo metodista na Carolina do Sul, em 2015, nutria outro tipo de ódio -o racial. Todas as vítimas eram negras. O que Bolsonaro tem a ganhar ao conjurar um cristianismo encurralado por ameaças externas? Ora, se você não gosta do que está sendo dito, mude de assunto. E nada mais eficaz do que invocar o medo para que os brasileiros esqueçam o que arde de verdade, do Pantanal aos 155 mil mortos por Covid-19, aquela “gripezinha” que, em março, o presidente previu que mataria não mais do que 800 conterrâneos. Forjar a sensação de perigo iminente é uma das armas mais poderosas para unir pessoas em torno de uma causa, e é isso que o presidente e seu exército bolsonarista tentam fazer ao vender a ideia de que os valores cristãos podem ir a pique. Acerta o pastor Valdinei Ferreira ao divergir de tantos colegas que veem sua crença sob estado de sítio. “A cristofobia é um uso retórico, feito por setores políticos reacionários, de períodos históricos em que houve perseguição aos cristãos, como na União Soviética.” “Entretanto, eles acionam essa ‘memória’ para se apresentar como ‘protetores da cristandade’ contra os inimigos incrédulos. É como se estivessem dizendo: ‘Olha, não somos perfeitos, mas vamos proteger a fé de vocês'”, diz o pastor titular no mais antigo templo protestante da capital paulista, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, de 1865. Continua Ferreira: “A coragem é exigida do cristão quando ele está numa posição minoritária e sendo pressionado a renegar suas crenças, mas se está numa posição de governo e poder, essa retórica toda de defesa é no fundo um ataque. Não é quando a religião é jogada aos leões que ela perde tudo, mas quando ela confia mais em César do que em Deus”.