SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Hayao Miyazaki é um velho rabugento, cheio de manias, obcecado com a noção de legado e incapaz de se relacionar com seu herdeiro presumido, o filho Goro. Ao mesmo tempo, é extremamente compassivo, leal e adepto de uma ética de trabalho que não aceita menos que a perfeição. Essas são algumas das facetas que podem ser vistas na série documental “Dez Anos com Hayao Miyazaki”, sobre o maior diretor de animação vivo. Em quatro episódios de 49 minutos cada um, disponíveis com legendas em português no site da TV pública japonesa NKH, são esmiuçados processos criativos de Miyazaki, um dos fundadores do lendário Estúdio Ghibli. A série faz parte de um projeto do também diretor japonês Kaku Arakawa, que em 2005 passou a registrar o cotidiano de Miyazaki com a condição de que o fizesse sozinho. O resultado é irregular tecnicamente, pelas condições de filmagem, mas precioso no que revela sobre o diretor de “A Viagem de Chihiro”, “Meu Amigo Totoro”, “Princesa Mononoke”, entre outros. Em 2016, Arakawa já havia lançado “Homem Sem Fim”, documentário que falava da aposentadoria anunciada por Miyazaki três anos antes. Aposentadoria entre aspas, porque o diretor testou o uso de computação, que despreza, num curta-metragem. Também anuncia que fará um novo último filme, “Como Você Vive?”, por ora uma produção 15% pronta, que entrega um minuto por mês. Já a série da NHK mostra a produção dos dois filmes anteriores à suposta aposentadoria, “Ponyo” e “Vidas ao Vento”. Os bloqueios criativos do diretor, o fumo e o café onipresentes, a busca pela perfeição na excruciante criação de uma animação feita à mão, tudo se desenrola no registro naturalista de Arakawa. Muito é anedótico, como o estilo meio déspota, meio paizão do diretor com seus subordinados, a quem distribui broncas e guloseimas com igual desenvoltura. Algumas cenas chocam. A crescente preocupação do diretor, hoje com 79 anos, com a morte e a ideia de deixar um legado o fazem definir suas dúvidas como “um abismo de desespero”. “Não resta muito tempo”, repete. O ponto nevrálgico é a relação com o filho Goro, que trabalhava com construção quando foi chamado pelo produtor do Ghibli, Toshio Suzuki, para dirigir uma animação contra o conselho do pai. Miyazaki ignora a presença do filho no estúdio, o faz chorar com uma reprimenda e, no lançamento do seu “Contos de Terramar”, basicamente rejeita o filme. Não por acaso, é um dos filmes menos pungentes do catálogo do Ghibli, que chegou ao streaming da Netflix em fevereiro deste ano. Em outro momento, ao finalizar “Vidas ao Vento” com uma cena de amor entre adultos, Miyazaki confessa ter dificuldade. “Nunca amei ninguém assim, então não sei” como filmar, diz. Com efeito, sua mulher, Akemi Ota, inexiste em cena no documentário. Falta um tanto de coesão narrativa e muito de contexto, em especial para os não iniciados no mundo do Ghibli. Se o peso psicológico da mãe do diretor, que passou quase toda a vida doente, é evidenciado e correlacionado com personagens dos filmes, o do pai é ignorado. Erro básico. A maioria dos filmes de Miyazaki tem referências ao voo e à aviação -Ghibli, um vento do Saara, era o nome de um avião italiano na Segunda Guerra Mundial-, e a temática pacifista impera. O pai do diretor dirigia uma fábrica que, na guerra, fazia partes de caças como o famoso Mitsubishi Zero. A forma de simbolizar tal herança veio com “Vidas ao Vento”, um filme antimilitarista que foi criticado por nacionalistas japoneses. Ele conta a história de Jiro Horokoshi, o engenheiro que criou justamente o Zero, e não é preciso ser psicanalista para entender o impacto da produção no diretor. No filme, há uma cena do jovem, ainda estudante, sobrevivendo ao terremoto que arrasou Tóquio em 1923. A sequência foi finalizada sob o impacto do grande sismo de 2011 -que gerou um tsunami e o desastre nuclear de Fukushima. Aqui o filme mostra um Miyazaki transtornado, visitando regiões afetadas e distribuindo desenhos do seu personagem infantil mais icônico, o espírito da floresta Totoro, para moradores. Novamente, o filme teve seu lado divã -uma complexa cena de quatro segundos do terremoto levou um ano e três meses para ficar pronta. Mas, como disse o diretor, “valeu a pena”. Há outras lacunas, como o seu relacionamento com outro fundador do Ghibli, o também genial Isao Takahata, que começou em 1963. Definido por Arakawa como único rival que Miyazaki respeita, usado por Suzuki para incentivar o lado competitivo do diretor, ele passa só lateralmente pela história. Para tanto, há um documentário mais convencional, “O Reino dos Sonhos e da Loucura”, lançado por Mami Sunada, em 2013, que abarca a saga do Ghibli, fundado em 1985. Hagiografia cândida de um santo deveras humano, a série de Arakawa ajuda a compor uma figura pouco conhecida fora do Japão e é um deleite para os já convertidos, à espera do 12º filme de Miyazaki.