SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Um dia fiquei presa dentro de casa”, conta a menina que narra o infantil “Morro dos Ventos”, ambientado numa favela do Rio de Janeiro. A mãe disse que a garota só iria de novo à escola quando a paz voltasse. “A paz voltou e fui. Minha melhor amiga, não. Tinha virado estrela.” O livro é dedicado à mãe da menina Ágatha Félix, baleada aos oito anos em setembro do ano passado durante uma operação da Polícia Militar no Complexo do Alemão. É lá que vive o autor da obra, Otávio Júnior, e a escrita, ele diz, foi um processo doloroso. “A vida tem essas nuances de dureza”, afirma ele. “Na literatura eu posso conectar as crianças, que estão começando a viver agora, com as questões de uma sociedade infelizmente pautada pela violência.” Mas “Morro dos Ventos” prioriza uma abordagem singela, fincada na emoção, acima da simples denúncia. Numa cena, as ilustrações de Letícia Moreno mostram uma classe inteira agachada, quando a aula é interrompida por um tiroteio que fica só implícito. O escritor não é nada estranho a essa realidade. Na comunidade onde a menina perdeu sua curta vida, ele desenvolve há mais de década o projeto Ler é 10 – Leia Favela. Abriu bibliotecas e ganhou o apelido de Livreiro do Alemão. “Quem mais trabalha pelo acesso aos livros na periferia são as pessoas daqui que tiveram suas vidas transformadas por eles”, diz. A conversa com o repórter é toda marcada por comentários sobre como o lugar é cheio de “pessoas capacitadas, com talento e com vontade” de criar suas narrativas. O enaltecimento da comunidade se faz presente no livro. A menina negra que o protagoniza sobe o morro, sozinha e desnorteada, para sofrer a morte da amiga -logo se vê rodeada de colegas que estendem, em pipas, a palavra “paz”. O escritor Otávio Júnior, conhecido como Livreiro do Alemão Divulgação homem negro com pipa na mão em frente a favela **** A pesquisadora Regina Zilberman afirma que esse sentimento difuso de abandono é um tema clássico das histórias infantis, povoadas desde sempre por órfãos. E a violência permeia os contos desde a época em que o lobo matou a avó da Chapeuzinho Vermelho e as irmãs da Cinderela mutilaram os próprios pés. Tanto melhor que essas histórias aproximem as crianças daquilo que vão encontrar quando puserem o pé para fora de casa. “Entre uma narrativa da Disney e uma que fale da fragilização da infância brasileira, eu fico sempre com a segunda”, diz Zilberman. Os livros infantis já abordam as mazelas brasileiras desde os anos 1970, quando houve um boom desse segmento no país. “Agora vivemos um momento de violência policial mais explícita nas periferias”, aponta Cristiane Tavares, que coordena a pós-graduação em literatura para crianças e jovens do Instituto Vera Cruz. As mortes por policiais no Rio vinham em uma tendência de alta -atingiram recorde histórico no ano passado, com 1.814 óbitos- antes que uma decisão do Supremo Tribunal Federal restringisse as operações durante a pandemia. Em maio, 12 pessoas foram mortas em ação da PM no mesmo Complexo do Alemão. “Não vai ser o livro que vai surpreender a criança, no sentido de mostrar que a realidade existe”, afirma Tavares. “Ele é mais uma forma para que ela possa elaborar toda a complexidade da sua vida social.” “Muitas vezes se quer colocar a criança em uma bolha de separação das questões sociais”, comenta Zilberman, que é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Aí então ela vê a violência no desenho animado, mas não a que está ali na esquina.” É justamente isso que busca fazer, segundo ela, o programa de alfabetização Conta pra Mim, do Ministério da Educação, que “faz uma higienização dos contos tradicionais em cima de uma compreensão completamente distorcida do que é a criança”. “Se você tenta reduzir a complexidade daquilo de que está tratando, desconsidera a inteligência do leitor”, diz Tavares. “Se o livro tiver uma verdade autoral, isso chega à criança. E não é preciso simplificar, porque ela vai perceber.” A pesquisadora lembra uma máxima de Adélia Prado -escrever para adultos e para crianças é como costurar vestidos feitos com o mesmo material, mas de diferentes cortes. Em “Morro dos Ventos”, o que está em primeiro plano é a angústia das crianças com uma brutalidade que pouco entendem e o vazio deixado pela morte súbita de gente querida. “Muitos educadores dizem trazer o aprendizado do chão da escola, eu trago o do chão da favela”, diz o autor. As meninas e meninos com quem convive gostam de tudo um pouco, conta ele, “mas se sentem muito felizes quando veem livros com essa temática periférica, eles se reconhecem na capa, no cenário, na cor da pele dos personagens”. “E as crianças de fora da periferia têm um desejo de conhecer mais dessa cultura”, acrescenta. O que falta é superar os gargalos crônicos do poder público e das grandes editoras para fazer com que obras feitas dentro da favela ganhem o resto do país e que a literatura de todo canto seja acessível a quem mora lá. “Imagina uma favela consumidora de livros. Isso vai refletir muito na qualidade da cidade, do país. Todo mundo sabe que quem move as grandes cidades são as pessoas que vivem na periferia.” MORRO DOS VENTOS Preço R$ 48,20 (32 págs.) Autor Otávio Júnior Editora Editora do Brasil OUTRAS DICAS Amanhecer Esmeralda Autor: Férrez. Ilustr.: Rafael Antón. Ed.: Dsop O livro infantil conta a história de Manhã, uma garota que mora num bairro periférico para quem às vezes falta pão, mas que não sucumbe diante dos infortúnios da vida Fábula Urbana Autor: José Rezende Jr. Ilustr.: Rogério Coelho. Edições de Janeiro O livro chacoalha os preconceitos de classe média ao jogar uma nova luz sobre crianças e jovens pedintes de grandes cidades. Na trama, um garoto pede um livro no semáforo, em vez de dinheiro Sangue Fresco Autor: João Carlos Marinho. Ilustr.: Alê Abreu. Ed.: Global Tido como um marco na literatura infantil que trata de violência no Brasil, o livro de 1982 conta a história de uma turma de crianças sequestrada para um campo de concentração na Amazônia