SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O sonho do carro próprio perdeu força na última década com a chegada de aplicativos de compartilhamento de veículos. Uma pesquisa de 2019 feita pela Deloitte viu que 56% dos jovens brasileiros das gerações Y e Z, que usavam esses serviços, consideravam dispensável possuir um automóvel no futuro. Mas a Covid-19 trouxe novo paradigma que pode travar a cultura do compartilhamento -ao menos até vir uma vacina. Mirando um mercado intermediário entre esses comportamentos, grandes empresas de locação de automóveis resolveram apostar em novos tipos de contratos, no estilo leasing, com prazos maiores, para quem quer ter um carro mas sem precisar adquiri-lo. “Vamos lançar neste semestre um produto de longo prazo parecido com o contrato de gestão de frota, mas para pessoa física, com prazos de 2 ou 3 anos”, afirma Nora Lanari, diretora de relações com investidores da Localiza. “Já tínhamos esse projeto no horizonte, mas a pandemia acelerou a curva de adesão porque tem muita gente saindo do transporte público e compartilhado para voltar para o transporte privado”, diz. “Lançamos em maio uma plataforma que oferece aluguel de carros zero quilômetro com contratos de longo prazo, 12, 24 ou 36 meses. Isso se assemelha ao que existe lá fora no formato do leasing”, afirma Renato Franklin, presidente da Movida. A estratégia nasce da soma de dois fatores: empresas querem diversificar seus produtos e clientes querem fazer viagens sem contato com estranhos para evitar contágio. Este último fator ganhou atenção especial das locadoras e foi o que motivou a viagem de mais de 1.000 quilômetros do cineasta gaúcho Guilherme Petry, 35. “”Minha esposa e eu moramos na capital paulista, mas a cada dois meses viajamos para o Rio Grande do Sul, sempre de avião. Agora, para evitar ficar fechado com outras pessoas, alugamos um carro”, diz. Como Petry, outros brasileiros estão trocando viagens de avião, de poucas horas, por igual trajeto com carro alugado, em jornadas que podem durar dias. Esse é um dos comportamentos do “novo normal”, realidade adaptada à pandemia. “Perdemos uma passagem de avião paga e postergamos nossa viagem meses, aguardando melhora no cenário da doença e tentando encontrar uma forma que nos expusesse menos aos riscos de contaminação”, afirma o cineasta. Segundo executivos das três maiores locadoras de automóveis do Brasil, Localiza, Unidas e Movida, o casal não é caso isolado. A busca por carros para viajar longas distâncias vem ganhando força. A conduta é recente e explica pouco dos resultados positivos do setor no segundo trimestre, mas pode dar alento para os próximos meses, na avaliação dessas grandes companhias. “Já percebemos melhora nos serviços corporativos. Quem viajava a negócios e alugava o veículo no aeroporto, agora está fazendo a viagem toda só de carro. Por isso acredito que nossa retomada deva ser mais rápida do que a da aviação”, disse Renato Franklin, presidente da Movida. A empresa afirma que o número de aluguéis na região metropolitana de São Paulo com destino a estados vizinhos cresceu mais de três vezes de março a julho deste ano, na comparação com o mesmo período de 2019. As concorrentes, Localiza e Unidas, não abrem dados específicos sobre o crescimento de viagens por trajetos, mas corroboram a tese dessa nova tendência. “Percebemos bom aumento na entrega de carros em locais diferentes da retirada e também mudança de cultura em viagens de longa distância. Pegar um carro em São Paulo e devolver em Brasília era raríssimo antes da pandemia e passou a ser normal”, diza o presidente-executivo da Unidas, Luis Fernando Porto. “Na pandemia muita gente quer fazer o trecho de ponte aérea com o veículo. Percebemos uma alta na busca pela viagem de um só caminho. Vimos muito disso crescer nos trechos Rio-São Paulo e São Paulo-Minas Gerais”, afirma o diretor de finanças da Localiza, Maurício Teixeira. Trocar a ponte aérea por uma viagem de carro alugado foi a opção da professora universitária Tânia Saliés, 61, para evitar contato com outras pessoas em ao menos parte de sua viagem aos Estados Unidos. Ela e o marido foram de carro do Rio de Janeiro a São Paulo, pegar o voo internacional. “Como iríamos ficar horas dentro de um avião e passar por aeroporto cheio de gente, preferimos dirigir do Rio até Guarulhos e evitar uma etapa de aglomeração. Foi tudo tão tranquilo que na volta repetimos o trajeto de carro”, afirma. Saliés diz que a escolha compensou financeiramente: o aluguel do carro custou menos que as passagens aéreas. Para o cineasta Petry, no entanto, a decisão pesou no bolso, pois ele e a mulher permaneceram com o automóvel durante todo o período em que ficaram em Porto Alegre. “Alugamos um carro 1.0, sem muito luxo, e pagamos R$ 100 o dia. Seria um preço bom se pagássemos só pela viagem, porque, mesmo percorrendo cada perna da viagem em dois dias, ida e volta nos custaria no máximo R$ 400”, afirma. As locadoras costumam cobrar uma taxa para quem devolve o veículo em local diferente do da locação. “Teríamos que pagar cerca de R$ 1.000 por entregar o automóvel de São Paulo no Rio Grande do Sul. Compensou deixar o carro parado e voltar com ele mesmo, caso contrário iríamos pagar mais outros R$ 1.000 se fechássemos um novo aluguel na volta”. Os resultados das três maiores companhias do setor no segundo trimestre deste ano mostram que, enquanto a receita do serviço de locação diária despencou, o dinheiro proveniente da gestão de frotas se manteve estável.