SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1928, o jovem Vicente Rosenberg deixa sua Polônia natal e faz uma longa viagem até Buenos Aires, onde se instala. Nos anos seguintes, se adapta bem à vida na então próspera capital. Conhece e se apaixona por Rosita, uma argentina com quem casa e que lhe dá três filhos, e faz sucesso nos negócios -abre uma loja para vender os móveis produzidos pelo sogro. Nos momentos livres, encontra amigos para beber no café Tortoni. Aos poucos, acrescenta a cultura portenha à sua identidade original -um judeu polonês que chegou a sonhar com uma carreira no Exército de seu país, mas desistiu para estudar direito, curso que em seguida abandonou antes de emigrar em busca de uma nova vida. Quando saiu da Polônia, o antissemitismo crescia na Europa e ele tinha um sentimento difuso de que as coisas não iriam terminar bem. Sua mãe e seu irmão ficaram para trás. Com a vida engatada em Buenos Aires, Vicente se culpa terrivelmente por ter deixado os familiares em uma Varsóvia que seria invadida pelos nazistas, enquanto divaga sobre sua identidade em mutação -ele se pergunta se é polonês, argentino ou judeu, ou um pouco de cada uma dessas coisas. “O livro questiona, e ridiculariza, eu espero, essa obrigação que nos é posta de nos definirmos em relação à nossa origem”, diz Santiago Amigorena, autor do romance “O Gueto Interior”, do qual Vicente é protagonista. “Nós somos o que nos tornamos. O que não significa de forma alguma que deixemos de ser o que fomos. A questão da identidade só faz sentido quando vista como uma questão sem resposta. Uma pergunta que você nunca deve parar de se perguntar.” Finalista do Goncourt no ano passado, o mais importante prêmio de literatura em língua francesa, “O Gueto Interior” é o décimo livro de Amigorena, ficcionista e diretor de cinema de origem argentina radicado em Paris desde os anos 1970, quando se mudou para a França com seus pais, fugindo da ditadura em seu país natal. O romance, que acaba de sair no Brasil, transforma em ficção a história real dos antepassados do escritor. Seu avô, um judeu polonês, emigrou para a Argentina no final da década de 1920, deixando a mãe em Varsóvia, com quem se correspondia por cartas. Nos primeiros tempos, elas eram numerosas, diz o escritor, mas rarearam a partir do início da Segunda Guerra. Entre 1940 e 1942, a bisavó de Amigorena enviou ao filho na Argentina só três missivas antes de desaparecer, uma mais desesperada do que a outra. Estas três cartas, às quais o escritor teve acesso há apenas alguns anos, são reproduzidas no livro, como uma espécie de testemunho em primeira pessoa dos horrores nazistas. “Os alemães não falam mais conosco, nos tratam como animais. Nas ruas as pessoas morrem de fome, e já nem sequer paramos para contemplar os cadáveres”, relatou sua bisavó. No romance, conforme os nazistas põem em funcionamento seu mecanismo de exterminar judeus, a mãe do protagonista para de enviar cartas. A partir daí, Vicente se fecha para o mundo. De um pequeno mas bem-sucedido empresário, feliz no casamento, ele se torna um beberrão viciado em pôquer que dorme até tarde e negligencia a mulher e os filhos. Ele também para de falar quase por completo -fica, literalmente, sem palavras para descrever os campos de concentração, agonia que aumenta quando lê nos jornais sobre o avanço da ofensiva alemã na Polônia. “O silêncio pode ajudar a sobreviver? Ele pode estar do lado da vida? Eu não sei. Sempre sofri com um silêncio mortal e macabro. Embora nunca tenha vivido uma realidade tão macabra como a vivida por minha bisavó e, à sua maneira, a 12 mil quilômetros de distância, meu avô. Mas sim, talvez, para ele, para Vicente Rosenberg, o silêncio era a única forma de sobreviver”, afirma o escritor. A mudez do personagem reflete a dificuldade daquela época em abordar o Holocausto enquanto ele ocorria, diz a narrativa a certa altura. Amigorena lembra seu primo, o escritor argentino Martín Caparrós, para quem a matança de judeus pelos nazistas foi um evento que ultrapassou os limites do que os humanos até então se acreditavam capazes de fazer. Isto teria gerado uma impossibilidade de verbalizar a tragédia, por um lado, e uma demora em encontrar um verbete adequado para a definir, por outro. “Precisamos de um nome que se refere a outros eventos históricos ou um neologismo, como genocídio? Esse nome deve ser voltado para o passado ou para o futuro? Esse nome deve nos obrigar a lembrar ou deve prometer, uma vez que o evento acabou, um futuro, ou seja, uma forma de esquecimento? Resumi neste romance, em poucas páginas, a história dos diferentes nomes assumidos pela destruição dos judeus na Europa”, diz. Escrito em francês, assim como toda a obra literária do autor, “O Gueto Interior” traz descrições factuais detalhadas do gueto de Varsóvia e do campo de extermínio de Treblinka, dando uma ideia da grande história em comparação ao universo particular do protagonista. Nestes trechos, a narrativa deixa de lado a ficção e adota um tom jornalístico. O número de judeus mortos aparece escrito por extenso, não com algarismos, artifício que causa mais espanto no leitor. Questionado sobre como vê a ascensão de líderes de extrema direita atualmente, Amigorena afirma ter preocupação, assim “como qualquer pessoa que ama a cultura, que ama os outros, que ainda pensa que ser humano pode ter um certo significado ou uma beleza incerta”. Por fim, diz torcer para que os jovens de hoje se lembrem do Holocausto, embora reconheça que é um direito deles o esquecerem. De qualquer modo, “é difícil imaginar que eles farão pior do que nós!” O GUETO INTERIOR Preço R$ 48 (128 pgs.); R$ 32 (e-book) Autor Santiago H. Amigorena Editora Todavia