‘Bolha’ da NBA contra a Covid-19 é sucesso de difícil repetição

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Interrompida por quatro meses e meio pela pandemia do novo coronavírus, a temporada da NBA foi retomada e concluída em uma experiência sanitária que se mostrou muito bem-sucedida. Em mais de cem dias, houve zero caso de Covid-19 no ambiente de proteção contra a doença criado pela liga norte-americana no complexo da Disney. A “bolha”, como se convencionou chamar o espaço nos arredores de Orlando, entrou no léxico do esporte e deixou lições claras sobre a possibilidade de isolamento do Sars-CoV-2. É bastante difícil, no entanto, que o formato seja repetido -até pela própria NBA. A um custo de US$ 180 milhões (cerca de R$ 1 bilhão), 22 times estiveram em ação na Flórida. Com protocolos bem rígidos e testagem diária em todos -no auge, entre delegações das equipes, jornalistas e outros profissionais, havia cerca de 1.500 pessoas-, a liga obteve um sucesso que nem seus dirigentes esperavam com convicção. As dúvidas foram expressadas claramente pelo principal cartola da NBA, o comissário Adam Silver. Existia o temor de que um caso de infecção pelo coronavírus dentro da “bolha” poderia alastrar rapidamente a doença e tornar inviável a conclusão do campeonato. Quando os times chegaram à Disney, o estado da Flórida vivia um pico de casos. A liga foi acusada de irresponsabilidade, mas se manteve imune enquanto o problema continuava se multiplicando nos Estados Unidos. “É melhor estar dentro da bolha do que fora da bolha”, disse o pivô Ian Mahinmi, um reserva nem chegou a entrar em quadra pelo Washington Wizards. Para que esse ambiente seguro fosse possível, a organização do torneio lançou mão de tudo o que o dinheiro podia comprar. Havia um anel que media constantemente a temperatura e uma pulseira que registrava os movimentos. Um alarme soava se o distanciamento mínimo não era respeitado. Foi usado ainda um aplicativo de celular com uma lista de possíveis sintomas que precisava ser preenchida todos os dias. “Seguimos os protocolos e mantivemos a comunicação. Estou muito, muito orgulhoso do trabalho que fizemos e do sucesso que conseguimos. Foi um enorme trabalho de colaboração”, afirmou o diretor médico da NBA, Leroy Sims. O processo para entradas e saídas do complexo também era rígido. Era necessária uma série de testes negativos para a Covid-19 antes da chegada e outra série para que a pessoa pudesse deixar o isolamento de seu quarto de hotel. A rigidez não ficou só na teoria dos protocolos, e jogadores que os descumpriram tiveram problemas. Richaun Holmes, do Sacramento Kings, foi buscar uma entrega de comida fora do limite estabelecido e precisou passar novamente por uma quarentena de dez dias. O mesmo valeu para Lou Willliams, do Los Angeles Clippers, que foi liberado para comparecer a um funeral e resolveu fazer uma parada em uma casa de entretenimento adulto em Atlanta. Com Danuel House Jr., do Houston Rockets, a situação foi mais grave. De acordo com a apuração da NBA, o ala recebeu em seu quarto uma mulher que havia trabalhado na “bolha”. Como ter hóspedes estava proibido, ele acabou expulso da Disney enquanto seu time disputava com o Los Angeles Lakers uma série válida pela segunda rodada dos playoffs. O jogador contestou a decisão, mas, mantendo-se firme durante todo o processo, a liga alcançou o objetivo de que até ela duvidava. Após 172 partidas realizadas, o campeonato foi concluído com um basquete de alto nível -e os Lakers campeões. “Foi uma demonstração de que testagem frequente e isolamento de todos os casos e seus contatos permitem o isolamento completo da doença. A bolha é uma versão mais intensa da estratégia de distanciamento físico, com isolamento de casos e quarentena de contatos, que tem sido amplamente proposta, porém não implementada, no Brasil”, afirma à Folha Marcio Bittencourt, médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do hospital universitário da USP. Alberto Chebabo, infectologista do hospital universitário da UFRJ, compara o funcionamento a um “lockdown”, termo usado para designar o confinamento radical como modelo de combate à transmissão do vírus. “Botaram todos em um único lugar, sem entradas de pessoas estranhas no ambiente, mostrando que o vírus realmente não consegue se disseminar e você pode manter o controle. Há algumas pessoas aí dizendo que isolamento social não funciona, que medidas de ‘lockdown’ não funcionam, e esse experimento da NBA mostrou que funcionam muito bem”, acrescentou Chebabo. O problema é reproduzir as condições estabelecidas na “bolha”. Nem a NBA pretende repetir o formato, porque realizar uma temporada completa nessas condições demandaria tempo e investimento muito maiores do que os empregados na conclusão do torneio de 2019/20 -com 22 dos 30 times, excluídos aqueles sem chances reais de classificação aos playoffs, e oito rodadas até o início do mata-mata. A versão feminina do campeonato (WNBA) e a liga de hóquei (NHL) também tiveram experiências positivas em suas relativamente breves “bolhas”. Mas até em campeonatos com orçamentos altíssimos -como os de futebol americano (NFL) e beisebol (MLB) dos Estados Unidos, que têm sofrido com a Covid-19- o tempo necessário e o número de pessoas envolvidas dificultam bastante a adoção de modelo semelhante. “O basquete você joga em uma quadra. No futebol, por exemplo, são mais atletas e o campo não aguentaria jogos consecutivos. Seriam necessários vários campos, vários estádios, dentro dessa bolha. É uma experiência muito difícil de ser repetida, mesmo no futebol americano, que tem tanto recurso financeiro quanto a NBA”, observou Chebabo. Isso não significa que o sucesso na Disney não tenha indicado caminhos. Entre a construção do ambiente antisséptico, em julho, e a entrega do troféu de melhor jogador das finais a LeBron James, em outubro, o experimento deu pistas sobre como pode agir o COI (Comitê Olímpico Internacional) na organização da Olimpíada de Tóquio, adiada de 2020 para 2021 justamente por causa da pandemia. Se o cenário é bem diferente, com mais de 10 mil atletas chegando de mais de 200 países para disputar medalhas nas mais variadas modalidades, há conceitos que podem ser aplicados. Para Marcio Bittencourt, “seria possível desenhar alguma estrutura de distanciamento intenso com protocolo de testagem durante os Jogos”. De qualquer maneira, não parece haver dúvida de que seja inviável emular o ambiente criado para concluir a liga norte-americana de basquete. Ainda que a “bolha” da NBA tenha sido “uma experiência bastante interessante”, como descreveu Alberto Chebabo, “a reprodução disso é muito complicada e muito difícil”.

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