SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mesmo que escritora Faye seja o eixo central de três romances, ela é quase uma ausência. Tudo o que se descobre sobre essa protagonista tão incomum é pela maneira como decide filtrar as histórias de outras pessoas com quem conversa. É uma elaboração complexa, que levou a canadense Rachel Cusk, sua autora, a promover um terremoto no mundo literário e se consagrar, depois de mais de três décadas de carreira, com a trilogia que começou com “Esboço”, lançado aqui no ano passado. Sai agora a segunda parte da série, “Trânsito”, que, ao frequentar a cidade, os amigos e a casa de Faye, dá passos importantes em trazer sua personalidade tão fugidia à luz. Esse caráter de esfinge da protagonista – também, e principalmente, narradora – não é mero suspense barato. A literatura de Cusk convida a investigar uma pessoa que não fala diretamente sobre a própria experiência, mas se mostra, inevitável, na seleção que faz das palavras alheias. A técnica da trilogia se revela num gracejo da protagonista sobre uma mulher que reclama de como seus alunos a exaurem, quando ela mesma é, na verdade, muito exaustiva. “Pensei na frequência com que as pessoas traíam a si mesmas por meio daquilo que reparavam nas outras”, escreve Faye. É um terreno intrincado de caminhar, mas no qual a autora se equilibra com delicadeza. A ponto de abrir margem para dúvida quanto a quem exatamente está selecionando os diálogos que compõem a obra –a autora ou a narradora? “Parte do que os livros querem mostrar é como o estado subjetivo é inescapável, então nesse sentido são exercícios de escuta seletiva”, diz Cusk. “Desde o começo foi claro para mim que era importante que Faye parecesse indistinguível da pessoa que escreveu o livro.” “Eu queria remover essa barreira que se tornou tão predominante na ficção contemporânea, em que o autor ou autora quer provar que não tem nenhuma relação viva com o material. Isso pode virar um contrato sórdido entre escritor e leitor. Então quis me livrar da noção de que eu estava inventando coisas. Mas de todo modo Faye teve que ser criada – ou desenhada – como qualquer outro personagem.” Escritores escrevendo sobre escritores é algo mais velho que andar para a frente. Mas Cusk acrescenta camadas que tornam seus livros reflexões envolventes sobre escrever. As conversas ali revelam a construção altamente subjetiva que toda pessoa faz de sua história – e a protagonista é perita em escavar o que seus interlocutores estão escolhendo realçar ou omitir sobre si mesmos– e o que serve de molde para cada um transformar a confusão da vida numa narrativa coerente. Numa passagem fascinante de “Trânsito”, Faye recebe uma mulher que quer escrever sobre um pintor, sobre o qual vem reunindo material há anos. Quando ouve uma pergunta sobre o que a interessa tanto nele, ela diz “ele sou eu”. Afirma que os quadros do artista não produziam apenas identificação, mas eram “pensamentos na cabeça de outra pessoa que ela podia ver”. É um comentário sofisticado sobre a relação do ser humano com a arte. Todos os personagens do livro, aliás, são retratados como exímios pensadores, capazes de filosofar em voz alta sobre a vida – o que acaba por homogeneizar, de certa forma, suas expressividades. Cusk reconhece isso. “O que os personagens estão falando é o tecido de um romance – eles não estão simplesmente sendo testemunhados ou gravados. Sua presença e suas expressões são parte da entidade artística do livro –nesse sentido, perderam sua liberdade. Então seu propósito não é representar a aleatoriedade ou a realidade objetiva, mas a superfície comum das interações humanas.” Em “Trânsito”, tomam voz um ex-namorado de Faye, um mestre de obras que reforma sua casa, um cabeleireiro e até uma astróloga oferecendo serviços por email, que “havia sido de modo evidente demais baseada num tipo humano para ser, por sua vez, humana”. É de se pensar como um contexto de pandemia, em que mais interações entre as pessoas são mediadas pela internet, afetaria a investigação delicada de Cusk. Afinal, nas redes sociais, todo mundo mede bem mais as palavras do que na espontaneidade da conversa ao vivo, já que está sob um maior escrutínio. “Minha estratégia tem sido evitar totalmente as mídias sociais, mas fui atacada o suficiente no passado por meus escritos sobre maternidade e a experiência feminina”, diz. “Sempre tive a consciência de que a escrita, e mesmo a fala, são uma forma de autoexposição que convida ao escrutínio e ao julgamento. Algo que me interessa sobre as redes sociais é o espetáculo de todo mundo se jogando no uso da linguagem como mídia pública sem necessariamente ter a habilidade de manejar a linguagem.” Para contextualizar – por causa de seus livros mais autobiográficos, “A Life’s Work” e “Aftermath”, em que discorre sobre os filhos e a dissolução de seu casamento, Cusk foi castigada pela crítica britânica, acusada de narcisismo e arrogância. Também já foi apedrejada pelo caráter apolítico de seus livros, centrados num umbigo de classe média. Falando à revista The New Yorker há três anos, Cusk comenta que jornalistas sempre são enviados a descobrir quem ela é de verdade. E diz algo que ressoa no modo como cria Faye. “Parece haver um problema com a minha identidade. Mas ninguém a consegue encontrar, porque ela não está aí – eu perdi todo o interesse em ter um eu. Ser uma pessoa sempre significou ser culpada por isso.” Tem um tanto de exagero dramático aí. Mas não dá para acusar Cusk de não saber manejar a linguagem.