SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ouvi muitas perguntas assim que me pediram para ver os novos filmes produzidos pelo Sexy Hot, os primeiros do pornô nacional com recursos de acessibilidade. Isso porque, como tenho deficiência visual, a apreciação seria às cegas, com o auxílio da audiodescrição recém-lançada pelo canal da TV paga para que quem não enxerga possa acompanhar as cenas. Será que vai ter uma voz sensual contando o que está acontecendo? Ela vai se empolgando junto com os atores? Será que conta tudo mesmo? Fala palavrão? E, principalmente, funciona? Não sabia as respostas. Estou bastante acostumado a ver filmes com acessibilidade, em que os momentos em que não há diálogo são preenchidos por uma voz que descreve com precisão ambiente onde a cena acontece, a aparência dos personagens e suas ações na tela. Vez ou outra nas fitas do circuito tradicional há uma cena de sexo. Mas nem o que as imagens mostram, menos ainda suas descrições, justificariam o preço do ingresso. Em geral os quadros são apresentados com frases do tipo “os dois se beijam, se deitam na cama, movem os quadris”. Mas alguém veria um filme só disso? Não posso dizer que seja totalmente virgem em relação a cenas mais explícitas. Tampouco tenho experiência. Filmes inequivocadamente pornôs só me chegaram na pré-adolescência, em fitas VHS que um vizinho arranjava do irmão mais velho, quando a curiosidade e a acuidade visual eram maiores. Vinha também certa culpa por ter caído em tentação. A sorte é que, conforme a vista foi diminuindo, eu me tornei imune a essa forma do pecado da luxúria, e os filmes de sacanagem ficaram tão inofensivos como os gritos em uma cena de parto ou no calor de uma partida de tênis. Com “Desejo Proibido” e “Sugar Daddy”, as produções com acessibilidade oferecidas pelo canal em suas plataformas digitais, não é mais possível sair inocente. Ou alguém é capaz de se manter indiferente quando, em meio a gritos e sussurros, uma voz feminina narra o seguinte –“ela cavalga, desce com força, comas mãos empinadas, desce com força, a mulher rebola”. Antes de ver os filmes, eu me perguntava se a narração estaria mais para aula de ciências, com descrições frias e objetivas, ou para locução esportiva, que se empolga conforme o clímax se aproxima. As duas armadilhas foram evitadas pela audiodescrição da Conecta Acessibilidade. O tom escolhido de voz é suave, explicando com neutralidade ao espectador cada manobra da dupla em cena. E muitas vezes se cala, não estou certo se por falta de novidade na tela ou para, digamos, deixar o espectador prestar atenção às falas das personagens. Quanto à linguagem, ela varia. Em “Desejo Proibido”, uma história ambientada no início do século 20 até com certo ar de novela das seis, uma jovem nobre engana o pai para transar com o noivo antes do casamento. Nela, dominam termos mais comportados, como membro e seios. “Sugar Daddy”, mais acelerada e agressiva, não tem sutilezas. O espectador cego é apresentado a closes de paus e bocetas, e deve estar preparado para verbos como mete e fode –tudo pronunciado com a mesma suavidade na fala com que se poderia audiodescrever “A Pequena Sereia” ou “Aladim”. A imaginação é uma ferramenta poderosa e, para mim, que enxerguei no passado, a sugestão é suficiente para a mente criar a imagem. Então penso que funcione, deixo ao leitor decidir qual seria seu objetivo. Não é novidade esse poder da palavra. Ao que me consta, o Marquês de Sade e os “Cinquenta Tons de Cinza” vêm funcionando para mais de uma dezena de pessoas, inclusive que enxergam. A carência pela adoção em massa de audiodescrição é tão grande que, se me fosse permitido listar os mil filmes que eu gostaria que tivessem o recurso incluído, “Desejo Proibido” e “Sugar Daddy” passariam bem longe. Em português, o recurso está disponível nos filmes exibidos pela Globo, em um ou outro festival e nas produções nacionais do Netflix. É irrisório. E já foi pior. Há cinco anos, audiodescrição era coisa de terça-feira pela manhã, às 11h, provavelmente um desenho animado ou um filme que tem história sobre cegos. Avançar em menos de uma década da Turma da Mônica ao canguru perneta indica que pessoas com deficiência visual cada vez mais são vistas como consumidores adultos e capazes de escolher sua diversão. É motivo de esperança e prazer, a quem interessar possa.