CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – A guarda de uma adolescente de 12 anos de Araçatuba, no interior de São Paulo, virou alvo de uma briga judicial entre sua mãe e sua avó materna, após a menina participar de um ritual de candomblé. Atualmente, a adolescente está com a mãe, mas por 17 dias, até a última sexta-feira (14), permaneceu com a avó, que entrou com a ação na Justiça. Ela afirma que não sabia do paradeiro e das condições da menina durante o confinamento no terreiro, enquanto a mãe atribui a ação a preconceito religioso. O Centro Cultural Ilê Axé Egbá Araketu Odê Igbô é frequentado pelos pais e pela adolescente, que, segundo a mãe, manifestou a vontade de participar de um ritual para ser iniciada na religião. “Ela é médium formada desde a barriga e a mediunidade dela foi aflorando”, diz a manicure Kate Ana Belintani, 41 anos. A mulher conta que a filha vinha apresentando sintomas físicos, como dores de cabeça, além de visões, o que levou a família a respeitar o desejo da menina de ser introduzida no candomblé. “Chegou um ponto em que ela tinha que [se] iniciar, porque estava fazendo mal para a saúde dela”, afirma a mãe. O ritual de iniciação prevê de 10 a 21 dias de recolhimento no terreiro, onde são cumpridas algumas tradições. O fiel tem o cabelo rapado e usa vestes brancas. Depois da cerimônia, adota um novo nome dentro da comunidade, relacionado ao seu orixá, divindade cultuada na religião. “[O ritual] simboliza o renascimento para a nova vida”, resume o babalorixá Rogério da Silva Martins Guerra, responsável pelo terreiro. No período, de acordo com ele, a adolescente aprendeu cantos e danças e confeccionou joias em homenagem ao seu orixá. Ela não teve contato com pessoas não iniciadas na religião e permaneceu num quarto sem móveis, com uma esteira no chão, edredom e travesseiro. O espaço não possui janelas, conforme a tradição. “Para nós é um templo sagrado, um espaço de renascimento”, explica Guerra. Em 23 de julho, quando a menina estava havia cinco dias no espaço, a polícia e o Conselho Tutelar entraram no local e levaram mãe e filha à delegacia para prestar esclarecimentos. “Fiquei com ela todo o período, mas, na hora que os policiais chegaram, eu tinha ido ao mercado comprar algumas coisas para ela. Me ligaram e eu voltei na hora”, narra a mãe. Segundo Kate, não houve maus-tratos nem abusos, e a família, incluindo a adolescente, sabiam de todo o procedimento que ocorreria dentro do centro e consentiram com a cerimônia. Guerra resume a ação como “vexatória”. “A gente nunca passou por isso. Perante a sociedade, o candomblé já é perseguido, imagine como foi a própria comunidade do bairro ver uma casa de candomblé com viaturas na porta, nunca ninguém ficaria a favor”, afirma. Segundo ele, um dos conselheiros chegou a insinuar que o ambiente era “insalubre e inóspito” e ligou a religião a “pretos macumbeiros”. “Sobre isso que fiquei muito chateado”, diz. Já a defesa de Maria de Lourdes Vanzelli, 72 anos, avó materna da menina, alega que denúncias anônimas ao Conselho Tutelar de Araçatuba motivaram a ação e que a busca pela guarda partiu da preocupação com a “integridade física, moral e emocional da menor”. Zaira Castro, defensora da avó, acrescenta que as supostas más condições do local foram verificadas pelas autoridades que estiveram no terreiro, mas que Maria de Lourdes só procurou a Justiça porque não sabia onde estava a neta, nem das suas condições. “Ela não sabia e não tinha contato e ninguém sabia [do paradeiro da adolescente]. Com isso, houve o envolvimento do Conselho Tutelar, perícia e delegacia. Eles fizeram as análises deles, não foi algo que partiu de nós”, afirma a advogada. Mãe e filha prestaram depoimentos negando as denúncias. A menina também passou por exames, que, de acordo com a defesa da mãe, constataram que não houve danos contra a adolescente. “O laudo do IML é categórico, não há qualquer lesão que tenha relevância para a medicina legal”, diz o advogado Hedio Silva Junior, do Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras), que defende Kate. Ele aponta que os membros do Conselho Tutelar agiram de acordo com outras crenças, desconsiderando os preceitos do candomblé. A mãe conta que, após a ação policial, o ritual foi acelerado e encerrado no dia seguinte. A polícia teria voltado novamente ao terreiro, mas a menina já estava em casa. A defesa da mãe alega que, como não houve sucesso na primeira tentativa de enquadrar o ritual abusivo ou o espaço como insalubre, o órgão passou a considerar como lesão a menina ter tido o cabelo rapado. Na terça-feira seguinte (28), por meio de uma liminar concedida durante o plantão judiciário, a avó obteve a guarda provisória da adolescente. “A única coisa que a gente viu nessa situação foi pura intolerância religiosa, preconceito. Tudo que foi feito foi normal, com o consentimento dela, a gente já estava ciente de tudo, tanto eu quanto o pai. Foi só racismo religioso por parte da minha família”, diz Kate. Ela diz que, antes da cerimônia, nunca houve disputa familiar pela guarda da adolescente. Ainda segundo a mãe, depois da revogação pela Justiça da guarda em favor da avó, na sexta, a menina relatou estar revoltada com a situação e querer seguir no candomblé. “Ela quer continuar, não é porque aconteceu tudo isso que ela vai parar”, afirma Kate. A defesa de Maria de Lourdes afirma que a ação não envolve intolerância ou preconceito contra o candomblé e que, no período em que a avó exerceu a responsabilidade sobre a adolescente, foi garantido a ela “o exercício pleno das práticas religiosas”. “Houve falta de diálogo por parte da família e acabou virando essa questão judicial, pública e política e eu me pergunto: as pessoas estão pensando na menina?”, acrescenta Zaira Castro. Ela afirma que Maria de Lourdes não deve recorrer da decisão que devolveu a guarda à mãe, já que entende que esta é a melhor resolução para o caso e que apenas quer manter contato frequente com a adolescente. De outro lado, o advogado de Kate afirma que a retirada da guarda da mãe, mesmo que temporariamente, foi arbitrária, pois foi tomada sem ouvir previamente a defesa. “Esse tipo de medida é absolutamente excepcional, uma atitude extrema, a lei prevê uma série de medidas intermediárias, como advertência ou eventual tratamento psiquiátrico”, explica Hedio. Ele diz que, depois de resolvida a questão da guarda, deve buscar reparação nas esferas cível e criminal pelas investidas da polícia e do Conselho Tutelar sobre o ritual de iniciação. O advogado considera que houve arbitrariedades no procedimento. A reportagem procurou ambos os órgãos, mas não teve resposta. O Ministério Público de São Paulo afirmou, em nota, não poder dar detalhes do caso, que corre em segredo de Justiça. Acrescentou que atuou “para a preservação do bem-estar da adolescente, bem como na defesa da liberdade de religião e de culto de todos os envolvidos”. Consultado pela reportagem, Pablo Lago, advogado especialista na área, explica que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê liberdade dos pais para transmitirem a religião aos filhos e que, como a menina já tem 12 anos, a vontade dela é considerada na escolha. “Se a adolescente diz que não se sente agredida ou lesionada de alguma forma e se ela comunga com os preceitos da religião, isso deve ser levado em consideração”, aponta. Lago afirma que, de forma geral, a lei estabelece como medida extrema a reversão de guarda, mesmo que temporariamente, mas que o juiz deve sempre levar em conta as provas juntadas ao processo. “Em caso de urgência, o juiz pode tomar decisões como essa, sem ouvir a defesa, mas a modificação de guarda é sempre excepcional e deve ser devidamente justificada, com provas”, observa.