SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma discussão que se arrasta por mais de duas décadas sobre a suspensão do pagamento de direitos autorais a músicos ganhará um novo capítulo em breve, desta vez embalada pela pandemia. Usando o argumento de que o setor hoteleiro está quebrado, por causa da pandemia, e de que contribui com pouco da arrecadação anual do Ecad, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o deputado federal Newton Cardoso Júnior, do MDB de Minas Gerais, conseguiu aprovar na semana passada seu pedido de urgência para a votação de um polêmico projeto de lei. Se aprovada, a medida trará uma economia de milhões de reais para os hotéis, tirando esse montante dos bolsos dos 383 mil músicos filiados ao Ecad, a entidade responsável pela cobrança e pagamento dos royalties. “Eu tenho um conselho para a rede hoteleira -não quer pagar a música, não toca a música. Deixa o hotel no silêncio”, disse Anitta, num vídeo divulgado pela Associação Procure Saber, coligação de artistas que informa sobre o funcionamento da indústria fonográfica. Mesmo com o distanciamento social, esse embate entre a indústria do turismo e a da música vem esquentando desde dezembro do ano passado. Isso porque o presidente Jair Bolsonaro assinou uma medida provisória isentando hotéis e resorts do pagamento de direitos autorais por canções executadas em rádios e televisores nos quartos. A medida não foi aprovada, mas no projeto de lei que agora tramita os quartos de hotel são só parte de um todo muito maior. Se for aprovado com suas dezenas de penduricalhos, o projeto vai isentar o pagamento de direitos autorais por parte de TVs e rádios educativas, eventos religiosos, beneficentes, escolares e de órgãos públicos, igrejas e templos, motéis, consultórios médicos e estabelecimentos comerciais de pequeno porte. Por não saber o que exatamente será votado –não há data de votação e nem relator definidos -, o Ecad não é capaz de estimar quanto deixará de receber caso o projeto seja aprovado. A arrecadação anual é próxima de R$ 1 bilhão, dos quais 23% vêm do segmento de clientes gerais, como hotéis, academias, restaurantes e lojas. A Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, a Abih, estima em R$ 22 milhões ao ano o montante total repassado ao Ecad, mas não sabe dizer de quanto seria a economia caso a nova lei entre em vigor. O Ecad – que distribuiu R$ 986,5 milhões em royalties no ano passado– afirma que mais de 50% dos hotéis estão inadimplentes. O projeto também tramita num péssimo momento para a classe artística, que não pode fazer shows e se vê obrigada a debater a questão em redes sociais, sem a possibilidade de realizar audiências públicas com as autoridades. Datada de 1997, a proposta – de autoria do médico Serafim Venzon, à época deputado federal pelo PDT de Santa Catarina – pede a isenção do pagamento de direitos autorais por parte de órgãos públicos e entidades filantrópicas, como igrejas e hospitais, com a justificativa de que nem o Estado nem essas entidades buscam o lucro. No decorrer dos anos foram anexados ao texto original 58 outros projetos, em linhas gerais versando sobre por que músicos devem ter o pagamento de seus direitos suspensos ou diminuídos. A demanda da hotelaria ganhou força pelas mãos de congressistas ligados ao setor, e o lobby hoteleiro já havia tentado – sem sucesso – aprovar neste ano uma medida provisória criada em função da pandemia que barrava o pagamento pelo uso de obras musicais. O principal pedido da classe hoteleira pode ser resumido tomando como exemplo um projeto de lei de 2014, da deputada Magda Mofatto, do PR de Goiás, dona de 21 hotéis em Caldas Novas, no seu estado -que os direitos autorais sejam recolhidos só por músicas executadas em áreas comuns de hotéis, como recepção, restaurante e piscina, e não por canções tocadas dentro dos quartos. As acomodações são consideradas ambientes privados pela classe hoteleira, portanto “uma extensão da residência do hóspede”, afirma Manoel Linhares, presidente da Abih, que representa 92% do setor. Nesse caso, direitos autorais não são devidos, argumenta ele, já que a música não é executada em ambiente público. “Dentro do apartamento [do hotel], o que é que tem? Uma TV, que já paga os direitos autorais. Hoje, a hotelaria pagar outro encargo [para o Ecad] é pagar duas vezes.” Esse não é o entendimento do Ecad, para o qual um quarto de hotel é público, “pois você não pode fazer o que quiser lá dentro, colocar dez hóspedes para dormir com você”, argumenta Isabel Amorim, superintendente do Ecad. Ela acrescenta que essa é também a leitura de associações de músicos em países da Europa e nega a bitributação. Amorim diz ainda que, caso o projeto seja aprovado, hotéis voltados para hóspedes de negócios, que contam com 200 ou 300 quartos, quase não pagariam direitos autorais, porque em geral têm poucas áreas comuns. No início de agosto, 33 associações – dentre as quais a OAB e a Fundação Roberto Marinho -, enviaram uma carta aos deputados federais para questionar o regime de urgência de um projeto que tramita há mais de 20 anos e afirmam que questões relativas à Lei do Direito Autoral, de 1998, não devem ser discutidas às pressas, no meio de uma pandemia e sem a participação do setor cultural. Segundo os músicos, a questão gira em torno do que é oferecido ao cliente. Frejat afirma que os hotéis estão oferecendo um benefício que deve ser remunerado, assim como “o frigobar e o travesseiro de pena de ganso são conveniências que fazem parte do preço” de uma diária. “Não me surpreenderia se eu não soubesse que agora, em nome da pandemia, querem passar a boiada em tudo”, diz Nasi, guitarrista da banda Ira. O autor do projeto original, Serafim Venzon, e o deputado que pediu urgência não quiseram comentar. Outra classe ameaçada pelo projeto é a de compositores que dependem 100% dos direitos arrecadados. Vine Show, que compôs hits como “Folgado”, da sertaneja Marilia Mendonça, e o forró “Ar Condicionado no 15”, de Wesley Safadão, explica que consegue viver desse trabalho porque emplacou sete sucessos nas mais de 400 músicas que compôs. A execução pública de uma faixa rende centavos para seu autor, logo o número de reproduções importa. Mas a realidade da maioria dos compositores, diz Show, não é essa, já que recebem quantias muito pequenas do Ecad por não terem sucessos nas rádios. “Eles esquecem que existe uma massa [de compositores] que recebe R$ 1.000, R$ 500, R$ 200.”