SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No largo do Arouche, em São Paulo, há um monumento em bronze com o busto de Luiz Gama. Numa de suas passagens pela estátua, imperiosa e monolítica, a professora Ligia Ferreira refletiu. Por que Gama precisa ficar ali, calado, deixando os outros falarem por ele? Epifanias como essa motivaram a publicação, pelas Edições Sesc, de “Lições de Resistência”, livro que compila exaustivamente os artigos jornalísticos deste que foi um dos principais intelectuais do século 19. O lançamento de um volume graúdo com quase tudo o que escreveu na imprensa esse pensador negro e autodidata, que se libertou da escravidão para se tornar uma das principais vozes do abolicionismo brasileiro, vem afinado à onda dos movimentos que procuram resgatar figuras apagadas por uma história escrita por homens brancos. Não é como se Luiz Gama fosse um desconhecido, como atestam o monumento no Arouche e relatos da enorme comoção pública em seu funeral. Mas é muito menos frequente na bibliografia de cursos de letras e direito que o trabalho de uma gama de pensadores brancos -Silvio Almeida, que se tornou presidente do Instituto Luiz Gama, afirmou em entrevista à Quatro Cinco Um que não ouviu falar dele durante toda sua formação acadêmica. O livro é fruto de uma pesquisa feita durante anos por Ferreira, professora de letras na Unifesp com doutorado em Sorbonne a partir de tese sobre a vida e obra de Gama. Cerca de dois terços dos 61 artigos reunidos ali vêm pela primeira vez a público, com comentários e uma alentada introdução da organizadora -que realiza uma ambição antiga ao trazer os textos de Gama ao contato direto com os leitores. “Pode ter instituições, medalhas com o nome Luiz Gama, tudo isso acho ótimo. Mas o quanto as pessoas conhecem dele?”, provoca Ferreira. “O problema é se encantar com o personagem, o abolicionista que libertou centenas de pessoas, e não ir para sua obra. Ele era um homem da palavra, que quis deixar o registro da sua compreensão do Brasil, alimentada por uma história de vida que ele nunca esconde.” Muitos dos artigos do jurista eram escritos em primeira pessoa, o que não era comum nem na imprensa nem em petições. É ferramenta de um autor sofisticado “que vai se contando ao mesmo tempo em que conta o que acontece na escravidão”, diz Ferreira, “naquela Justiça praticada de modo extravagante para negros e para brancos”. Filho de Luiza Mahin, africana que foi figura simbólica de levantes como a revolta dos Malês, Luiz Gama nasceu livre e foi vendido pelo pai, descendente de portugueses. Alforriado ainda adolescente, passou a estudar fundamentos jurídicos e dedicou sua vida à denúncia da contradição intrínseca entre direito e escravidão. Recorrendo a textos escritos em países europeus que não eram maculados pelo sistema escravista -e portanto não precisavam se preocupar em legitimá-lo-, Gama se armou de um arcabouço teórico que via na propriedade de pessoas algo que feria pressupostos básicos do direito que vigorava no Brasil. Não precisou recorrer a truques. Os artigos no livro trazem o jurista mostrando, como quem soma dois e dois, que práticas escravocratas executadas naquele cotidiano de meados do século 19 iam de encontro a leis que estavam vigentes. Ao destacar como injustas decisões de um caso contra escravizados, escreve que “a magistratura antiga, enfeudada aos criminosos mercadores de africanos […] sepultou-se nas trevas do passado; a moderna, inconsciente, recua espavorida diante da lei; encara, com súplice humildade, o poder executivo; e, sem fé no direito, sem segurança na sociedade, e esquivando-se ao seu dever, declara-se impossibilitada de administrar justiça a um milhão de desgraçados”. Gama não teve uma educação acadêmica, mas se tornou representante maior daquilo que há de mais nobre na advocacia, segundo o professor de direito Wallace Corbo, da FGV -a defesa de quem não pode se defender. “Não tem contradição nisso. Pelo contrário. Ele só fez o que fez porque não era um homem da academia, por não estar inserido naquele liberalismo brasileiro, que em sua maioria defendia uma abolição conservadora, segura e gradual.” As instituições jurídicas da época, explica o professor, serviam para dar sustentação ao Estado escravocrata. “Era natural então que a academia gerasse pensadores que não viam problema da escravidão.” Por isso a importância de Gama ter se erguido com as próprias pernas -ou, para usar suas próprias palavras, “não possuía pergaminhos, porque a inteligência repele diplomas como Deus repele a escravidão.” “Luiz Gama não só tinha uma cultura jurídica imensa como dominava a comunicação. Conseguia muito bem criar um efeito junto ao público”, aponta Ligia Ferreira. “O jornalismo, afirmo com muita segurança, fazia parte da identidade profissional dele. Ele foi o abolicionista que foi porque conseguiu dar publicidade a isso.” E se aqueles textos na imprensa não tratassem de personagens reais, acrescenta a pesquisadora, “estaríamos diante da melhor literatura” -assim como a atividade na imprensa tinha ligação umbilical com o bacharelismo naquele período, ela também se confundia bastante com a função de escritor. Gama, aliás, também teve importante produção poética. O elitismo da crítica literária, diz o professor Eduardo de Assis Duarte, que coordena o Literafro na UFMG, também colaborou para escantear este seu lado. “Cansei de escutar dos meus professores que Luiz Gama não é poeta.” Para além do preconceito racial, agia contra ele o fato de só ter escrito um livro -“Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”- e produzir poemas satíricos, de forte engajamento político. “Era uma poesia militante, e isso, para o pensamento do modernismo formalista, é o fim da picada.” “Mas a poesia dele tem papel precursor”, continua Duarte. “É o primeiro intelectual brasileiro que se declara negro abertamente na sua poesia. Coisa que Machado de Assis não faz nos seus textos.” Mas basta de outras pessoas falando por Luiz Gama. No encerramento de sua carta ao amigo Lúcio de Mendonça, registro em que discorre sobre sua vida e talvez seja seu texto mais conhecido por ora, ele se apresenta com suas melhores credenciais. “Eu como simples aprendiz-compositor de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.”