BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Um vídeo com conteúdo falso, antiquarentena e contra o governo da Argentina vem sendo intensamente compartilhado nas redes sociais em meio à pandemia, em diversos idiomas, inclusive em português. Na linha de outros que circulam com desinformação sobre o coronavírus, como o americano “Plandemic”, o vídeo “Algo Grave Está Ocorrendo na Argentina” surgiu em 14 de agosto. Distribuído em grupos de WhatsApp, no Facebook e no Twitter, o vídeo foi visto 82 mil vezes em dois dias nesta última plataforma. Na gravação, um narrador, sem citar as origens das afirmações, elenca episódios que mostrariam o que seria a derrocada do país e que há na Argentina um regime ditatorial. Também cita fatos, mas os exagera e os distorce. Afirma, por exemplo, que “os argentinos estão confinados há 120 dias e que [os números do] vírus só aumentam”. Há quarentena com regras duras no país, mas não há ninguém “confinado”. Há distintas fases de flexibilização em curso, com mais de dez províncias com baixíssima ou sem circulação do vírus. Na capital, a região metropolitana de Buenos Aires, o epicentro da pandemia atualmente, seguem fechados colégios, bares, restaurantes e shoppings. Dizer que as cifras do vírus só aumentam é correto, mas esconde o fato de que, segundo os principais infectologistas do país, como Pedro Cahn, se não fosse pela quarentena adotada com rapidez, em 20 de março, a Argentina poderia ter número de mortos cinco vezes maior do que o registrado até agora. O vídeo diz que se trata “da quarentena mais extensa e a mais inútil” do planeta –uma mentira. Também afirma que o governo do presidente Alberto Fernández reprime a liberdade de expressão, promovendo perseguição a jornalistas. Não há o registro de nenhuma ação do tipo. O vídeo diz que a situação é tão grave que pode ser comparada ao período da ditadura argentina (1976-1983), em que houve repressão à liberdade de expressão de fato, além de 20 mil pessoas desaparecidas. A montagem afirma diz que Judiciário e Congresso estão paralisados, o que também não é verdade. Ambos funcionam por meio de videoconferências e um número menor de sessões presenciais. Também diz que pessoas estão sendo mortas por descumprirem a quarentena. Há, sim, o caso de um jovem cujo paradeiro é desconhecido. Ele teria sido visto, pela última vez, sendo advertido, num posto de controle, por estar sem a documentação necessária para transitar em estradas. Apoiadores da oposição difundem a ideia de que ele teria sido morto por não respeitar a quarentena. Não há, porém, evidências que sustentem a declaração, e a polícia ainda busca o rapaz. O vídeo, divulgado sem autoria, recorre à generalização. Descontextualiza panoramas mais amplos a partir de um evento. E, a partir da concatenação de exageros, constrói um raciocínio cuja conclusão é falsa. “Chamamos isso de controle de narrativa e é muito perigoso no universo da desinformação”, diz Cristina Tardáguila, diretora-executiva da IFCN (International Fact-Checking Network) e cofundadora da Agência Lupa. “É muito perigoso porque atinge públicos de perfis diversos. E peças feitas com esse grau de sofisticação não são obra do acaso. É parte de uma estratégia ordenada”. Ainda não se sabe quem controla as contas que mais divulgaram o vídeo, mas algumas delas o fizeram mais de 70 vezes. Tardáguila afirma acreditar que, ao reportar esse tipo de conteúdo, não o dissemine ainda mais. “O importante é sinalizar que existe, descrevê-lo, mas quanto menos compartilhar, melhor.” O vídeo tem sido distribuído entre contas brasileiras. Há, ainda, uma versão em que um apoiador do presidente Jair Bolsonaro mostra a peça e faz comparações entre “o que o governo esquerdista da Argentina faz lá e o que STF [Superior Tribunal Federal], [o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo] Maia e [o presidente do Senado Davi] Alcolumbre fazem aqui”. A conclusão: “Se não tivéssemos eleito Bolsonaro, o Brasil não ia nem virar uma Venezuela, ia virar uma Argentina”. A taxa de letalidade do coronavírus na Argentina é muito mais baixa do que a do Brasil. O país vizinho registra, atualmente, 127 óbitos por milhão de habitantes, contra 508/1 milhão do Brasil.