RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A procuradora Soraya Gaya, que já elogiou o presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais, confirmou ter acessado a intimação que informava ao Ministério Público a decisão de conferir foro especial ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no processo apelidado de rachadinha. A iniciativa dela, em 2 de julho, detonou a contagem do prazo para apresentação de recurso três dias antes do cronograma definido pelos investigadores. Com isso, sem ter sido informado pela procuradora sobre o acesso e o consequente início do prazo, o grupo responsável pela investigação do caso manteve a estratégia e, com isso, o prazo para o recurso expirou. Em junho, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio concedeu foro especial a Flávio. Pela decisão, o processo que investiga a prática de “rachadinha” no gabinete dele na Assembleia Legislativa do Rio saiu das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, e passou para o Órgão Especial do TJ, colegiado formados por 25 desembargadores. O MP-RJ tentou um recurso à decisão, mas o Tribunal de Justiça alegou a perda de prazo e o rejeitou. Em processos penais, a contagem de prazo começa no dia seguinte ao conhecimento das intimações, à exceção das vésperas de final de semana e feriados. Quando a intimação é formalmente recebida em uma sexta-feira, começa a valer na segunda-feira seguinte. A reportagem apurou que era essa a estratégia dos promotores que, por terem acessado o sistema na sexta-feira (3), agiram como se esse fosse o pontapé inicial para apresentação de recurso e acabaram perdendo o prazo. Procurada pelo jornal Folha de S.Paulo, Soraya disse neste domingo (16) que houve negligência da equipe investigadora. Eles têm um setor que fica responsável pela observância dos prazos. Alguém falhou, e eles querem sujar meu nome por erro próprio. O foro especial a Flávio no caso das “rachadinha” foi concedido a ele no final de junho pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio. Procuradora natural do processo, já que atua na segunda instância, Soraya não recorreu dessa decisão, por concordar com a medida do TJ. Há um ano, ela já tinha dado parecer favorável ao foro especial para o senador. Hoje, diz que sua tese foi acolhida pelo TJ. A minha tese foi contemplada pelo tribunal, logo, falta interesse recursal de minha parte. Eu teria que tomar ciência do acórdão e quem tivesse interesse de recorrer deveria fazê-lo no prazo legal, disse. Em uma crítica direta aos demais integrantes do Ministério Público, Soraya afirma que o que se mostra inadmissível e leviano é exatamente isso: os interessados em recorrer perderam o prazo e querem debitar a outrem suas falhas. O acesso de Soraya à intimação eletrônica lançou no sistema o registro de que o MP-RJ tinha tomado oficialmente ciência da decisão, dando início ao que a Justiça chama de fluência de prazo. A petição que oficializou a ciência, contudo, só foi protocolada no dia seguinte. Questionada sobre a necessidade de ter avisado ao MP-RJ que tinha tomado ciência e não recorreria contra a decisão, Soraya disse que essa não é sua atribuição. Quem tinha interesse contrário falhou. Quem tinha que comunicar não era eu. Minha tese foi aceita e respeitada pelo procurador-geral. Quem tinha interesse que recorresse. Não é minha atribuição.” Uma resolução do MP-RJ orienta os procuradores a informarem a instituição caso decidam não interpor recursos ao tomar ciência de acórdão que discrepe da tese sustentada pelo Ministério Público nos autos ou de tese institucional aprovada pelo Procurador-Geral de Justiça. Mas Soraya nega que tenha contrariado essa recomendação. Ninguém da equipe me falou que iria recorrer, se houvesse toda essa preocupação, teriam interposto o recurso ou então o procurador-geral teria me pedido para não tomar ciência porque queria ter um prazo maior para recorrer. Entretanto nada disso ocorreu. Não observaram que o feito foi remetido à minha Procuradoria, ou seja, houve negligência deles com a vigília, afirmou. Devido a suas manifestações de simpatia ao presidente Bolsonaro, o encaminhamento dado pela procuradora alimentou entre seus pares a suspeita de que tenha antecipado intencionalmente a data final para interposição de recursos. Questionada sobres elogios públicos a Bolsonaro, Soraya diz que nem se lembra dessas publicações nas redes sociais. Nem sei que posts são esses. Já elogiei tantos presidentes. É é só mais um. Em sua página no Facebook não há elogios a ex-presidentes. Em julho de 2019, ela compartilhou o vídeo de um canal seguido por apoiadores do presidente em que Bolsonaro defende as políticas ambientais de seu governo e questiona dados sobre desmatamento. “Gostei das respostas dele, bem objetivo, publicou. Também no ano passado, em outubro, a procuradora que costuma enfeitar suas fotos nas redes sociais com uma bandeira do Brasil publicou a notícia de que Bolsonaro pretendia obrigar presos a trabalhar para cobrir despesas com o sistema prisional e perguntou aos amigos o que achavam disso. Soraya curtiu todas as respostas de apoio à proposta do presidente. A procuradora manteve suas postagens mesmo depois de a Folha de S.Paulo revelar o parecer em que ela defendia a concessão de foro especial a Flávio. Em agosto de 2019, Soraya se manifestou em favor do foro especial a Flávio em resposta ao habeas corpus impetrado pelos advogados do senador. Na manifestação, a procuradora disse que Flávio teria cometido supostos crimes “escudado pelo mandato que exercia à época”. Ela também disse que, sendo ele o filho do presidente, havia grande “interesse da nação no desfecho da causa e em todos os movimentos contrários à boa gestão pública. Ao defender a concessão de foro especial ao senador, a procuradora afirmou que não lhe parecia a melhor postura querer julgar Flávio “de forma unilateral e isolada, quando o mesmo tem uma função relevante e que a todos interessa”. “Existe uma tendência em extirpar o chamado foro privilegiado, que de privilégio não tem nada. Trata-se apenas de um respeito à posição ocupada pela pessoa. Assim, é muito mais aparentemente justo ser julgado por vários do que apenas por um, fica mais democrático e transparente, escreveu. Assinado pela advogada Luciana Pires, o pedido que garante foro especial ao senador questionou a competência da primeira instância para julgar o caso. A advogada argumentou que Flávio era deputado estadual na época dos fatos e que, portanto, teria foro especial. O MP-RJ tem até amanhã (18) para recorrer ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). No Ministério Público, o mal-estar não se restringem às dúvidas acerca das intenções de Soraya, mas também ao fato de promotores terem perdido o prazo. A revelação da participação de Soraya no episódio acirrou ainda mais o clima de desconfiança. Na sexta-feira (14), ela chegou a negar ao procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem, que tenha acessado o sistema. Diante da negativa, Gussem determinou abertura de sindicância para apurar o caso. Em nota, o MP afirmou que Soraya encaminhara expediente solicitando a adoção de providências para elucidar quem teria acessado o sistema eletrônico que gerou a fruição do prazo para impetração dos recursos extraordinários e especiais no caso das ‘rachadinhas’ do gabinete do hoje senador Flavio Bolsonaro. A reportagem apurou que, em mensagens enviadas a amigos também na tarde de sexta, Soraya se disse vítima de grampo e invasão no computador. Ela diz que seus processos recebem tratamento uniforme. E ninguém fica olhando nomes de partes, os fatos são o foco. Se alguém errou, não fui eu. Solicitei ao procurador-geral que instaurasse procedimento para apurar quem dentro da nossa Instituição está enlameando o próprio nome da mesma, com atitudes desonestas e criminosas, afirmou Soraya, dizendo-se doente com a situação. Os deputados e senadores do PT decidiram representar contra a procuradora no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). O pedido é para que o colegiado apure os fatos de responsabilidade funcional e da ordem jurídica nacional, sendo passível a aplicação de sanções legais a Soraya. A representação entregue ao CNMP reproduz reportagem da Folha de S.Paulo sobre abertura de sindicância contra Soraya por ter antecipado o prazo de contagem. Os parlamentares apontam que a atitude da procuradora “parece incorrer em má-fé processual e violação a deveres de devida observância às competências internas da instituição que integra”. “Os fatos que a reportagem traz à luz, cujo conteúdo é relatado também por outros periódicos já indicados no rodapé desta peça, ensejam apuração acurada, na medida em que indiciam, em tese, uma possível quebra de deveres e de vedações impostas a membros do Ministério Público”, completam os parlamentares. A peça diz ainda que os fatos relatados indicam que “foram ofendidos deveres funcionais” previstos na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. São citados pelos parlamentares como deveres funcionais infringidos os artigos que determinam que os membros do Ministério Público devem manter ilibada conduta pública e particular, zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas pela dignidade de suas funções, obedecer aos prazos processuais, desempenhar, com zelo e presteza, as suas funções e declarar-se suspeito ou impedido, nos termos da lei. “Torna-se fundamental trazer esclarecimentos, no caso, sobre deveres éticos da atuação processual e extraprocessual dos membros do Ministério Público em alinhamento às teses alegadas em Juízo e em coordenação com os grupos estratégicos através dos quais a instituição exerce suas competências, inclusive ouvindo-se os membros do Ministério Público do Rio de Janeiro que atuam no caso, para que não paire suspeições indevidas e ilações que já começam a proliferar em relação à atuação específica de tais membros do MP/RJ.”