BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ministro Marco Aurélio, do STF (Supremo Tribunal Federal), votou nesta sexta-feira (14) a favor do recurso do repórter-fotográfico Alex Silveira, que cobra indenização do poder público por ter sido atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha disparada por um policial militar em uma manifestação em São Paulo em 2000. Para ele, o Estado deve ser responsabilizado, uma vez que tem a obrigação de assegurar um ambiente saudável para o exercício profissional da imprensa. O caso em análise na corte pode definir as bases para julgamentos futuros de casos de jornalistas feridos por policiais na cobertura de protestos, além do direito de eles serem indenizados. Alex Silveira ficou com apenas 15% da visão no olho esquerdo após ser atingido por uma bala de borracha quando cobria para o jornal Agora, do Grupo Folha, um protesto de servidores na avenida Paulista. O julgamento virtual no Supremo teve início nesta sexta e foi interrompido por pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Alexandre de Moraes. Em seu voto, Marco Aurélio defendeu a anulação da decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, para quem Alex Silveira teve “culpa exclusiva” pelo ferimento e, por isso, não deveria ser ressarcido pela administração estadual. Na primeira instância, o repórter-fotográfico teve reconhecido o direito de ser ressarcido no valor de cem salários mínimos, mas, na apelação, o TJ paulista derrubou essa decisão. Os desembargadores disseram que o jornalista teria assumido um risco excessivo ao se colocar entre os manifestantes e a polícia. Segundo a defesa de Alex Silveira, caso a decisão do tribunal de São Paulo prevaleça no STF, ela poderá configurar um precedente perigoso e funcionar como um salvo-conduto a comportamentos violentos da polícia em manifestações públicas, causando constrangimentos à atuação da imprensa. O ministro Marco Aurélio, do STF, ressaltou que a situação se insere em contexto no qual tem se discutido, “com muita frequência, intimidações e violências sofridas por profissionais da imprensa durante a cobertura de atos públicos”. Para o magistrado, o momento atual revela a necessidade de assegurar o exercício profissional da imprensa, que deve contar não só de ambiente livre de agressão, “mas também de proteção, por parte das forças de segurança, em eventual tumulto”. “A Polícia Militar deixou de levar em conta diretrizes básicas de conduta em eventos públicos, sendo certo que o fotojornalista não adotou comportamento violento ou ameaçado”, disse o ministro em seu voto. Marco Aurélio afirmou que o uso de arma com balas de borracha deve considerar padrões internacionais. “Incumbe às forças policiais agir com cautela, visando garantir aos cidadãos segurança, proteção à integridade física e moral.” O ministro propôs a seguinte tese a ser aplicada em casos similares. “Viola o direito ao exercício profissional, o direito-dever de informar, conclusão sobre a culpa exclusiva de profissional da imprensa que, ao realizar cobertura jornalística de manifestação pública, é ferido por agente da força de segurança.” Taís Gasparian, advogada da equipe que defende o jornalista, afirma que “a conduta policial fere diversos preceitos constitucionais, que protegem a dignidade da pessoal humana, a cidadania, a liberdade de expressão e de informação”. “Para que tenhamos uma imprensa livre, é essencial que jornalistas e fotógrafos estejam em lugares de tumulto. Precisam estar presentes em guerras, rebeliões, revoluções e em simples manifestações em centros urbanos”, diz. Sobre o voto de Marco Aurélio, a defensora afirma que o ministro ainda não fixou o valor a ser ressarcido para o profissional atingido. “Na decisão, o ministro determina que o TJ-SP estabeleça o valor da indenização. Precisamos aguardar o final do julgamento para ver o que o conjunto dos ministros decidirá a respeito”, diz. O processo do jornalista vai nortear os julgamentos futuros sobre o tema porque o STF decidiu que o caso reúne os requisitos para servir de modelo, e assim atribuiu a ele a condição que no jargão jurídico é chamada de repercussão geral. A discussão jurídica aborda o chamado princípio da responsabilidade objetiva do Estado, que prevê que sempre que uma pessoa em funções públicas causar dano a alguém, a administração deve indenizar, independentemente da intenção ou culpa do servidor. O TJ-SP, porém, havia afastado essa regra sob o argumento de que Alex contribuiu para que o resultado do episódio fosse o ferimento em seu olho. O fato de o julgamento envolver uma ameaça à atividade da imprensa no país levou entidades de defesa do jornalismo e da liberdade de manifestação a ingressarem no processo. Diante da relevância do assunto, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo investigativo) e a Artigo 19, entidade internacional de defesa dos direitos humanos, pediram ao STF para serem ouvidas na causa como partes interessadas, condição que na linguagem técnica do direito é denominada amicus curae. Antes do julgamento, a AGU (Advocacia-Geral da União), que atua na defesa da administração federal, também ingressou no processo como amicus curae, mas se manifestou para demonstrar preocupação caso o resultado seja favorável a Alex. “Importa relevar que a regra geral a ser consolidada no presente julgamento não pode inviabilizar o adequado desempenho de atribuições legais e constitucionais de órgãos de segurança, sobretudo em hipóteses nas quais a voluntariedade da vítima em se colocar em situação de confronto elucide a existência de sua culpa exclusiva”, alegou a AGU. Hoje com 49 anos e morando na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, Alex estuda oceanologia na FURG (Universidade Federal do Rio Grande) e, apesar das severas restrições causadas pelo ferimento no olho, realiza alguns tipos de trabalho de fotografia, principalmente na área do meio ambiente. “Minha vida mudou absurdamente. Há 20 anos tenho uma cicatriz que vou carregar para o resto da vida, independentemente do dinheiro que eu receba. Hoje enxergo cores e formas, só consigo identificar as pessoas que estão a dois metros de distância de mim”, diz Alex. Antes de ter o olho esquerdo ferido na manifestação, Alex já tinha complicações no olhar, uma vez que um problema congênito reduziu a apenas 15% sua visão no olho direito. O repórter-fotográfico diz ter ficado indignado com a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que atribuiu a ele a culpa por ter sido atingido pela bala de borracha disparada por um policial militar. “É uma forma de censura. Começou algum tipo de encrenca, nós temos que deixar a área, porque a culpa será nossa em caso de acidente? Aí eles fazem o que quiserem, pois não vai haver ninguém registrando. Para nós estar lá não é só um direito, é uma obrigação”, afirma. Nesse tipo de processo no STF, que na terminologia do direito é denominado recurso extraordinário, o Ministério Público Federal é ouvido na condição de fiscal da lei. Em seu parecer na causa, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que o repórter-fotográfico tem direito a receber a indenização do Estado. “Excluir a responsabilidade objetiva do Estado pelo dano causado à vítima vai de encontro aos direitos e obrigações atrelados ao exercício da profissão de jornalista”, afirmou. Aras ressalta que é preciso “respeitar o papel de relevo da imprensa como mecanismo de fiscalização social”. A reportagem procurou a PGE-SP (Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo), órgão do estado que cuida da defesa da administração paulista no processo. A assessoria de imprensa afirmou que “em respeito aos trâmites judiciais, a PGE não antecipa argumentação fora dos autos”. O pedido de vista paralisou o julgamento, que ainda não tem prazo para ser retomado. Nesta sexta-feira, o presidente do STF, Dias Toffoli, teve alta médica e já está em casa. Ele ficou internado durante a semana por causa de uma pneumonite alérgica.