SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após fracasso nas negociações de um acordo para redução de salário de pilotos e comissários, a Latam deve demitir esta semana 2.700 funcionários -quase 40% de seu quadro de tripulantes. Segundo Jerome Cadier, presidente da companhia, o ajuste é necessário diante da crise do setor aéreo e do fracasso na tentativa de equiparar os salários pagos pela empresa com os da concorrência, em média 30% menores. O corte não deve ter impacto sobre a operação da empresa, dado que a quantidade de voos caiu de 750 por dia antes da pandemia para 150 atualmente. Com a expectativa de um período prolongado de demanda retraída, o quadro reduzido deve ser suficiente até pelo menos o final do próximo ano, diz Cadier. A empresa não descarta retomar uma renegociação salarial, dado que a diferença em relação à concorrência persiste. “Acreditamos que em algum momento os nossos colaboradores vão começar a entender que não dá para preservar privilégios”, afirma. Até agora a empresa sobreviveu à pandemia sem nenhum aporte governamental. A expectativa é que um financiamento seja autorizado nos Estados Unidos, onde a empresa decretou recuperação judicial, ainda nesta semana. Com essa previsão, a Latam consegue se financiar sem um aporte do BNDES, diz Cadier, embora as negociações com o banco sigam em curso. Nesta quarta (12), Latam e Azul iniciaram as vendas para os voos compartilhados em 64 rotas, conforme acordo de codeshare anunciado em junho. Na época, a operação gerou especulações quanto a uma possível fusão das empresas ou compra da Latam pela Azul. Cadier, no entanto, descarta essas hipóteses. PERGUNTA – Em artigo publicado na Folha em maio, o senhor afirmou esperar uma queda na demanda entre 30% e 40% no pós-pandemia. Desde então, analistas estão menos pessimistas com a retração econômica. Qual é a sua projeção de demanda agora? JEROME CADIER – É difícil falar quando é o pós-pandemia, mas não mudamos as nossas previsões. Há dois números para ter na cabeça. O primeiro é quando a gente fala do final do ano. A nossa estimativa é que a quantidade de voos esteja aproximadamente na metade do que ela estava no ano passado. Então é uma queda de 50%, talvez 40%. Essa estimativa não mudou desde o começo da pandemia, e ela está se confirmando. O segundo número é o que estamos voando agora, entre 150, 200, talvez chegando a 240 voos até o final de setembro. Isso é mais ou menos o que a gente estimava. O que sim está pior é o internacional. A gente imaginava que ia retomar mais rápido e isso está demorando mais. P. – A queda na demanda decorre da conjuntura de pandemia, mas há também mudanças estruturais, como a previsão de queda nas viagens a negócios. O senhor concorda com essa análise? JC – Que outras mudanças estruturais antecipa? Você não faz turismo por Zoom, mas reunião de negócios você pode fazer por Zoom. Isso vai fazer com que a demanda corporativa no futuro seja menor. Isso é inegável. A outra coisa que deve acontecer, que está mais ligada ao PIB e à saúde das empresas, é que independente de você ter solução tecnológica ou não, as empresas têm menos dinheiro hoje. Elas utilizaram parte do caixa para sobreviver durante a crise, então muitas terão disposição menor a enviar os seus colaboradores para viagens ou vão condensar em menos viagens durante o ano. Esses são dois fatores de longo prazo. Nosso cenário de recuperação completa da demanda é 2024, quando a receita deve ser parecida com 2019. P. – A empresa pretende redimensionar sua atuação no mercado internacional, priorizando rotas nacionais? JC – Não necessariamente priorizamos as rotas regionais, mas vamos colocando os aviões e os voos na medida em que a gente sente que existe demanda. Se ela vai crescendo mais nos domésticos, a gente vai começando mais voos no doméstico. O doméstico hoje representa uma parcela maior do que realmente representa nos voos da Latam. Mas no longo prazo a Latam continua acreditando que o modelo é de uma companhia que voa internacional, doméstico, conecta os principais hubs do país. Esse modelo a gente não reviu e não pretende rever. Mas crescimento está realmente desigual nos dois. P. – A empresa anunciou um corte de ao menos 2.700 tripulantes. Como essa redução de quadro afeta a operação? JC – A companhia deve operar menos voos daqui em diante? Em relação ao número de voos atuais, não. Na medida em que a gente fala dos cenários de recuperação da quantidade de voos, provavelmente esses 2.700 não iriam ser necessários até o final do ano que vem. Se no final do ano que vem a gente perceber que o mercado está retomando mais rápido do que a gente imaginava, talvez a companhia volte a contratar. Mas não valia a pena a gente manter o quadro sendo que voamos hoje 150, 200, talvez no final do ano 400 voos, quando esse mesmo quadro operava 750 voos diários. P. – Além dos custos com a rescisão, a empresa não fechou um acordo de redução de jornada e salário com o sindicato, como fizeram as concorrentes. Um acordo do tipo ainda está nos planos da empresa? JC – É fácil comparar com Gol e Azul sem entender que são companhias totalmente diferentes. Essas duas companhias remuneram os tripulantes na mesma rota, no mesmo voo, no mesmo equipamento, 20% a 30% menos do que a Latam. No mercado que estamos imaginando, com uma demanda muito menor de passageiros, com uma tarifa mais baixa, vai ser primordial você ter um custo competitivo. A gente tentou explicar isso durante todo esse tempo. Eu acho que o grupo de voo e o sindicato se prenderam numa figura de nenhuma mudança permanente, acreditando que a companhia podia continuar sendo ineficiente e pagar a eles mais do que paga os seus concorrentes. Por isso que a nossa proposta era de um ajuste de forma permanente. Estamos revendo todos os nossos custos, fizemos reduções de pessoas, de estrutura, a gente se adequou à situação atual. Infelizmente até agora não conseguimos encontrar um caminho junto aos tripulantes, e por isso precisou reduzir. A gente continua acreditando que em algum momento o grupo de voo, os nossos colaboradores, vão começar a entender que não dá para preservar privilégios. P. – Um acordo de redução de jornada e salário ou para redução permanente do salário ainda está nos planos para esse ano ou no próximo? JC – A gente espera em algum momento eventualmente voltar a conversar, porque a situação não melhorou -o nosso custo continua 30% mais alto do que o da concorrência. Eu acho que isso é pouco sustentável. Não sei como a gente vai, sinceramente, voltar depois das demissões. Hoje estamos concentrados em fazer as demissões durante essa semana e eventualmente voltar a dialogar depois. P. – Com a recuperação judicial nos EUA e os aportes anunciados desde então, a empresa ainda negocia um acordo com o BNDES? JC – A companhia ainda não teve nenhum aporte, ou seja, não existiu nenhum dinheiro que entrou depois da decretação do Chapter 11 [recuperação judicial nos EUA]. As negociações estão avançadas. A gente espera nesta semana a decisão do juiz da corte americana quanto a qual opção de financiamento será adotada pela Latam. As opções estão firmes, compromissadas, o dinheiro deve entrar durante o mês de agosto, começo de setembro. A companhia consegue se financiar sem esse apoio [do BNDES] com o que a gente sabe hoje. Se a retomada for mais lenta, é óbvio que sempre é bom você ter uma capacidade de se financiar maior, por isso que eu não quero simplesmente falar que não tem necessidade do dinheiro do BNDES. Acho que tem, pode vir a ter a necessidade. Hoje a gente conseguiu se financiar sem o apoio do BNDES, mas se eventualmente a crise se aprofundar, pode ser necessário um aporte. A companhia segue negociando. P. – O acordo de codeshare com a Azul gerou especulações sobre uma possível fusão ou venda da Latam Brasil. Uma operação do tipo é uma possibilidade? JC – Uma potencial venda da Latam para a Azul é ficção. Na semana passada, a Azul anunciou que estava negociando com seus credores. Se você não tem dinheiro para pagar o dia a dia, você vai precisar de dinheiro para se financiar no longo prazo, o que eu acho que a Azul está buscando. Além disso, ela precisaria de mais bilhões de dólares para comprar uma companhia maior que ela no Brasil. Tem zero possibilidade de isso acontecer. O codeshare já é um grande movimento, um grande avanço. Já está à venda parte dos voos hoje. Esperamos que esse codeshare seja para mais rotas, o foco da companhia hoje é implementar isso. Se isso pode se transformar em outra coisa, eu duvido. RAIO-X Jerome Cadier, 50, é presidente da Latam desde 2017. Antes, foi vice-presidente da marketing na Latam (2013-2017) e na Whirpool (2003-2013). É formado em engenharia industrial pela Escola Politécnica da USP e possui MBA pela Northwestern University.